Entre as testemunhas convocadas pela comissão da Câmara americana que investiga o ataque ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, destoa um nome. Alex Holder não é um figurão republicano ou conspiracionista. Também não integra grupos paramilitares de extrema direita. O documentarista britânico apenas estava no lugar errado na hora errada. Ou na mais certa das horas.
Holder não só foi instado pelo grupo, que conduz um espetáculo político e midiático para apresentar ao público suas descobertas, como precisou entregar dezenas de horas de gravação. Isso porque suas câmeras tiveram acesso exclusivo ao então presidente Donald Trump e sua família durante a malsucedida campanha republicana pela reeleição e sua tentativa posterior de subverter a democracia.
A intimação foi a melhor propaganda possível para a série documental “Unprecedented” (“Sem precedentes”, em português), lançada no último dia 10 no serviço de streaming Discovery+. Sem a publicidade gratuita, os três episódios talvez passassem despercebidos em meio à chuva de filmes, séries e livros que tentam vencer a fadiga sobre a turbulenta Presidência de Trump.
A história de como um pouco conhecido cineasta britânico conseguiu entrevistas cobiçadas por jornalistas do mundo inteiro não é mirabolante: contatos, timing e um pouco de sorte. Antes da pandemia começar, Holder entrevistou uma figura do universo trumpista para um documentário sobre o imbróglio israelo-palestino, ainda em pós-produção:
"Acabei discutindo com ele essa ideia ridiculamente louca de conseguir acesso e fazer um documentário sobre a família Trump", disse ao GLOBO o cineasta, que anda com seguranças desde que compareceu ao Capitólio.
Quem fez a ponte entre o documentarista, que anda com seguranças desde que foi ao Capitólio, e a então primeira-família foi Jason Greenblatt, um ex-advogado da Organização Trump que atuou como enviado do ex-presidente ao Oriente Médio. Ele é um dos produtores executivos da série, que começa já com um aviso: o ex-mandatário e sua dinastia não tiveram qualquer controle editorial sobre a obra.
Greenblatt trabalhou ao lado de Jared Kushner, o genro do ex-presidente que capitaneou a política trumpista para o Oriente Médio. Kushner e sua mulher, Ivanka, deram entrevistas ao documentário, assim como os irmãos dela, Donald Jr. e Eric. Eles são os três eixos centrais do documentário e partes integrais dos quatro anos de Trump à frente do Salão Oval. O foco narrativo de “Unprecedented” não é a política, mas a trama familiar.
O documentário como Trump usou seu divórcio de Ivana, sua primeira mulher, que morreu após uma queda na quinta, para impulsionar sua marca, sem dar muita atenção para o que o show midiático causava pra vida dos filhos do casa. O pai sempre tinha tempo para as crianças, “mas em seus próprios termos”, diz o próprio Donald Jr. A competição entre os três era estimulada e a vitória, uma forma de ter o afeto paterno.
Não é à toa que o produtor e editor da série, o brasileiro Marcos Horácio Azevedo, cita a série “Succession”, da HBO, como uma das inspirações. O drama narra a disputa da família Roy pelo controle de seus negócios bilionários, mas os Trump talvez estejam mais para Veep — a comédia da mesma emissora sobre uma vice-presidente incompetente e sua equipe ainda mais inábil.
"Acho que os Trumps quiseram participar porque estavam muito confiantes de que venceriam na eleição de 2020. Acreditavam que, assim como em 2016, as pesquisas estavam erradas", disse Holder.
"O fato de eu ser britânico foi outro fator, assim como a minha postura. Disse para eles: “vocês reclamam tanto da maneira como são retratados pela mídia, mas quero ouvir vocês e saber quem são de verdade”.
As expectativas de vitória provaram-se erradas, e a atmosfera foi ficando mais violenta conforme o tempo passava e a cruzada antidemocrática ganhava força. A primeira das três entrevistas de Trump ao filme foi em 7 de dezembro de 2021, um mês após a vitória de Biden ser confirmada.
"Era o presidente dos EUA, sentado na residência da Casa Branca, inventando teorias da conspiração e não aceitando que perdeu (...). Naquele momento, achei que era alguém desconectado da realidade", disse Holder, que se recusa a afirmar se foi procurado pela equipe do ex-presidente desde seu depoimento.
Contrapontos a Trump
O que era para ser um conto familiar se transformou na história de um presidente que não queria abrir mão do poder. Para fazer um contraponto à realidade paralela dos protagonistas, Holder usa como fio condutor os depoimentos de jornalistas e acadêmicos, que agem quase como checadores e âncoras no mundo real.
Os analistas repetem, apesar do filme não mostrar provas, que Ivanka era contra pôr em xeque a lisura da eleição e que sua recusa lhe fez perder favoritismo para seu nada hesitante irmão mais velho, Donald Jr. Em depoimento à comissão da Câmara, ela disse sob juramento que havia “aceitado” a avaliação do então secretário de Justiça, William Barr, de que não havia evidência de fraude no pleito.
Quando os primeiros detalhes de “Unprecedented” vieram à tona, contudo, os investigadores da Câmara repararam em contradições. Em dezembro, Ivanka disse a Holder:
"Acho que muitos americanos estão se sentindo desamparados e questionam a transparência de nossas eleições", afirmou. "Isso não está certo, não é aceitável, e ele [Trump] precisa comprar essa briga (...). Ele quer garantir que essas vozes serão ouvidas e continuará a lutar até que todo recurso legal seja esgotado".
Não demorou para que a íntegra do trecho fosse demandada pelos deputados. Em seguida, disse Azevedo, pediram mais partes da gravação e, depois, o material bruto quase inteiro, junto com o depoimento de Holder. Para o inquérito sobre as tentativas de Trump de intervir no processo de certificação da Geórgia, contou o editor, provavelmente todas as fitas precisarão ser entregues.
"A gente não discute, simplesmente fornece", disse o editor sobre as gravações, que também incluem imagens feitas no Capitólio durante a invasão, incluindo entrevistas.
Silêncio sepulcral
Se a série foi promovida como um filme sobre o 6 de janeiro, no entanto, o momento central só chega no meio do terceiro episódio. E o acesso sem precedentes, isso não se traduz em grandes novidades: os personagens se mantém fiéis ao roteiro que o mundo está exausto de ouvir.
Os três filhos do então presidente se recusam a comentar o 6 de janeiro, assim como o vice-presidente, Mike Pence, outro entrevistado e alvo daquele que talvez seja o momento mais interessante do filme. Com as câmeras ligadas, ele recebe um e-mail que, segundo a série, é o rascunho do pedido enviado pela Câmara para que ativasse a 25ª Emenda da Constituição americana.
A cláusula, que o vice se recusou a acionar, diz respeito à sucessão presidencial caso o mandatário esteja incapacitado de governar. Pence apenas diz “sim, excelente” e pede que seu auxiliar imprima uma cópia do e-mail. Em seguida, afirma crer que “os melhores dias dos EUA sempre estão por vir”, palavras intercaladas com imagens do Capitólio sendo protegido com cercas.
Apenas Trump aceitou falar sobre o ataque à sede do Congresso. Foi um “dia triste em que havia muita raiva no nosso país”, disse ele, à época já ex-presidente, afirmando que as pessoas foram a Washington “porque estavam irritadas com uma eleição que acreditavam ser fraudulenta”. Os invasores, completou eram “pessoas inteligentes que viram e veem o que aconteceu na eleição”.
A série termina indagando qual dos três aprendizes carregará o bastão de seu pai, mas ela mesma dá a resposta: Trump não dá sinais de querer outro Sol na sua órbita. Pressionado por adversários de peso como o governador da Flórida, Ron DeSantis, ele já dá pistas de que anunciará em breve sua candidatura para 2024. Cabe ver se a História se repetirá, seja em solo americano ou em outro lugar.
"Já tivemos o episódio do tesoureiro do PT assassinado. O presidente Bolsonaro segue a mesma cartilha de Trump e Steve Bannon de preparar o terreno para questionar a eleição", disse Azevedo, afirmando esperar que a série sirva de alerta para os eleitores brasileiros às vésperas de outubro.
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