O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan
Reprodução/Flickr - 01.03.2016
O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan

Enquanto os líderes dos países da Otan celebravam o levantamento do veto da Turquia à adesão da Finlândia e da Suécia na semana passada, a cerca de 3 mil quilômetros dali, instalava-se na comunidade de refugiados turcos e sírios na Suécia, a maioria da etnia curda , um clima de medo e ansiedade . O acordo trilateral entre Ancara, Estocolmo e Helsinque  inclui uma gestão "ágil e completa" dos pedidos de extradição das autoridades turcas de alegados "terroristas" residentes nos dois países nórdicos e muitas incógnitas.

Após a longa deriva autoritária do governo de Recep Tayyip Erdogan , a definição de "terroristas" na Turquia foi expandida e agora inclui dissidentes pacíficos e até jornalistas críticos. Dois parceiros do governo sueco liderado pelos sociais-democratas, o Partido de Esquerda e o Partido Verde , manifestaram suas dúvidas sobre o acordo. A preocupação é ainda maior na comunidade curda, que desconhece qual foi o compromisso do Executivo, quem pode ser afetado pelas deportações, e se as expulsões são de responsabilidade do governo ou se têm de ser endossadas pelos tribunais.

Nesta terça-feira, os representantes dos aliados Otan formalizaram a aprovação da candidatura dos dois países nórdicos. Enquanto isso, em Estocolmo as dúvidas permanecem. No domingo, a primeira-ministra sueca, a social-democrata Magdalena Andersson, deu uma entrevista coletiva em que não negou ter se comprometido a cumprir todos os pedidos de deportação, como asseguram representantes do governo turco .

"Sou ministra há oito anos e nunca falei sobre o que se fala na sala de negociação", limitou-se a comentar. Suas palavras multiplicaram o desconforto entre os oponentes de Erdogan na Suécia. Um porta-voz do Partido da Esquerda manifestou enfaticamente sua rejeição ao acordo.

"O acordo com a Turquia é horrível, e estaremos juntos com a comunidade curda nas ruas no sábado para protestar contra ele", afirmou. "Ele significa que as armas voltarão a ser exportadas para a Turquia, e comprometerá a reputação da Suécia em relação aos direitos humanos e à minoria curda", afirmou.

O porta-voz pede para a palavra ser concedida aos cidadãos. "Acreditamos que um referendo sobre a adesão à Otan deve ser realizado. Antes do acordo, 60% dos suecos eram a favor da integração, mas agora esses números podem ter caído. Houve uma reação mais forte na sociedade sueca contra o acordo do que eu esperava", argumenta.

Nem mesmo Amineh Kakabaveh, deputado independente de origem curdo-iraniana cujo voto foi fundamental para evitar a vitória de uma moção de censura contra Andersson há um mês, recebeu explicações ou garantias do Executivo sobre as consequências das demandas turcas. "Dizem que nenhum cidadão sueco será deportado, mas não está claro o que acontecerá com os milhares de pessoas que ainda estão em processo de solicitação de asilo", advertiu Kakabaveh.

Uma parte da imprensa sueca também tem sido crítica, assim como membros dos partidos da Esquerda e dos Verdes, que fazem parte do governo. No entanto, o Parlamento já não se reunirá antes das eleições gerais de 11 de setembro, e portanto a estabilidade do governo não está em perigo.
A analista Gunnilla Herolf, do Instituto Sueco de Relações Exteriores, acredita que os temores sobre o acordo são exagerados. "O governo disse que não mudará as leis suecas, nem sua definição de terrorismo. Além disso, a questão das deportações não depende do governo, mas sim dos tribunais, e com certeza vão bloqueá-las", afirmou.

Kakabaveh ressalta que há um precedente pouco tranquilizador: o de Resul Ozdemir, um jovem acusado pela Turquia de ser membro do PKK, que foi deportado há pouco mais de um ano enquanto solicitava asilo. Ele está atualmente preso na Turquia. Rukken Yetikaim, a prefeita deposta da cidade turca de Yuksekova, é uma das ativistas curdas que podem estar implicadas em um pedido de extradição.

"Fui condenada a 19 e 36 anos de prisão em dois julgamentos diferentes por minha militância política com o Partido Democrático do Povo (HDP). Eu sei que não estou na lista de 33 pessoas que Erdogan pediu meses atrás. Mas na Turquia fala-se de uma nova lista de 73 pessoas, e não sabemos quem está lá", explica a requerente de asilo que chegou à Suécia há quatro anos.

No salão principal do Centro Cultural Curdo, localizado em Estocolmo, decorado com fotos de peshmergas, combatentes das forças armadas do Curdistão iraquiano contra o Estado Islâmico, acontece um concerto de música curda. Antes do início, os participantes gritam “Shahid nameren” ("os mártires são imortais") e são recolhidas assinaturas para que a UE retire da lista de organizações terroristas o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), o movimento que luta há décadas atrás pela soberania da região curda na Turquia. "Hoje em dia recebo ligações de muitas pessoas preocupadas com seu futuro. Elas me perguntam: “Como o acordo afetará minha situação? Eles podem me deportar?” Esse acordo com o tirano Erdogan é um desastre", disse indignado Befa Bedlisi, um dos gerentes.

Para Erdogan, um dos objetivos nas negociações com Helsinque e Estocolmo era acabar com o suposto tratamento preferencial oferecido a pessoas e organizações próximas ao PKK. Na sua mira também está a organização do religioso Fetullah Güllen, que ele culpa pelo golpe de Estado de 2016. Mas o acordo entre os três países também contempla o levantamento do embargo à venda de armas a Ancara que ambos os países nórdicos aplicam desde 2019 devido à sua intervenção militar na Síria. Além disso, Erdogan também conseguiu destravar em Washington a aquisição de 40 caças-bombardeiros F-16.

As exigências de Erdogan colocaram a comunidade curda em uma posição complicada, ao vincular a segurança da Suécia aos seus direitos. Estima-se que o número de residentes curdos neste país escandinavo seja bem superior a 100 mil, mais de 1% da população. Embora a maioria venha da Turquia, a última onda veio da Síria e também pode ser afetada. Erdogan considera o Partido da Unidade Democrática (PYD), o partido que dirige a entidade autônoma de maioria curda no Norte da Síria, como um braço do PKK. "O acordo parece incluir o fim do apoio político e humanitário que a Suécia forneceu à região de Rojava. É muito injusto, porque fomos nós que mais sangue derramamos para derrotar o Estado Islâmico", disse Shiar Aly, representante deste governo autônomo na Suécia.

A comunidade curda aqui tem sido neutra em relação à adesão à Otan. Respeitamos a decisão dos suecos, mas não a esse preço. Em seu escritório, decorado com um grande pôster de Che Guevara, Kakabaveh garante que sua oposição ao pacto com Erdogan não se deve ao seu status de curda, mas sim ao de cidadã sueca.

"É uma traição a todo o povo sueco. Por uma questão de princípio, os direitos de seus habitantes não podem ser comprometidos por um acordo com um ditador como Erdogan. Eles arruinaram a reputação da Suécia como um país humanitário, construída por tantos anos por líderes como Olof Palme", afirma a mulher, pequena, mas de caráter firme, que na juventude integrou uma milícia curda no Irã.

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