Com a eleição de Gustavo Petro na Colômbia, a esquerda volta a ser dominante na América do Sul. Para alguns, a região, na qual o Brasil de Jair Bolsonaro ficou isolado politicamente, vive o que tem sido chamado de uma nova onda rosa.
Especialistas ouvidos pelo GLOBO, porém, ressaltam as expressivas diferenças em relação aos governos esquerdistas do início deste século, entre elas a escassez de recursos econômicos, um discurso e posições mais pragmáticas — nos quais não cabe o bolivarianismo — programas de governos mais moderados e condicionados por um contexto internacional adverso, além de uma forte agenda social e cultural, que inclui o combate ao aquecimento global e a defesa de direitos de minorias.
Se a onda do começo do século já divergiu da fase vermelha da luta armada, nos anos 1960 e 1970, hoje temos o que Juan Gabriel Tokatlián, professor de Relações Internacionais e vice-reitor da Universidade Torcuato Di Tella, em Buenos Aires, chama de “onda rosa light” já instalada em cinco dos 12 países sul-americanos: Colômbia, Chile, Bolívia, Argentina e Peru, onde o outsider Pedro Castillo é o mais vulnerável do grupo.
Se considerados Suriname e Guiana, que têm presidentes de partidos progressistas— ainda que em Suriname a eleição seja indireta, e na Guiana a política seja influenciada por fatores étnicos — são sete chefes de Estado da esquerda e quatro que vão de uma direita mais radical à centro-direita em Brasil, Paraguai, Equador e Uruguai. A Venezuela de Nicolás Maduro está numa categoria diferente, de um governo de esquerda autoritário. Nesse cenário, o futuro do Brasil, para os analistas, é crucial.
"Petro, na Colômbia, e Gabriel Boric, no Chile, são líderes progressistas, mas cuja origem não é o Partido Comunista ou uma esquerda intransigente. Cientes da situação de seus países, estes presidentes, assim como Luis Arce, na Bolívia, e Alberto Fernández, na Argentina, adotam agendas prudentes", diz Tokatlián.
Novos temas
Não se busca mais refundar países; o anti-imperialismo desapareceu dos discursos; as instituições são defendidas com ênfase, e a moderação é a principal estratégia para atrair investidores e transmitir previsibilidade econômica.
Na recente Cúpula das Américas, em Los Angeles, Boric se reuniu com mais de 20 CEOs de grandes companhias, entre elas Amazon e Google, para convencê-los de que é um presidente confiável. No conturbado Peru, Castillo desistiu de fazer grandes mudanças, rompendo com a ala radical do partido que o levou ao poder.
Os programas incorporaram temas como o combate ao racismo, políticas de gênero, defesa do meio ambiente e direitos das mulheres.
"O progressismo adotou bandeiras sociais, culturais e políticas. Mas o desafio maior hoje é administrar, redistribuir riqueza" , frisa Tokatlián.
A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) reduziu de 2,1% para 1,8% a projeção de crescimento da região para 2022. O panorama econômico é complexo e os novos governos, ao contrário daqueles de Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa — o trio bolivariano — e também dos de Luiz Inácio Lula da Silva e Michelle Bachelet, não contam com a ajuda de um boom de commodities.
Entre 2000 e 2010, as commodities tiveram uma alta de preços histórica, graças à demanda de países como China e Índia, que permitiu reduzir a taxa de pobreza da América Latina de 27% para 12%, de acordo com um relatório de 2018 do Fundo Monetário Internacional.
Para os governos esquerdistas do começo deste século, foi o que permitiu financiar programas sociais audaciosos, entre eles as missões bolivarianas que ajudaram Chávez a vencer um referendo sobre sua continuidade no poder, em agosto de 2004.
"A situação econômica é bem diferente e difícil, em quase todos os países da região, apesar do aumento do preço do petróleo. A Venezuela não tem hoje os mesmos recursos que teve Chávez. Nenhum dos presidentes atuais terá os recursos que rendeu o boom das commodities. São tempos difíceis, e por isso estes presidentes não terão o apoio popular que tiveram Chávez, Morales e Correa", afirma o professor de Harvard Steven Levitsky, coautor de “Como morrem as democracias”.
Governos fracos
O que Tokatlián considera uma “onda rosa light” Levitsky define apenas como “governos mais fracos”.
"Não veremos revoluções nem nada disso, nada de socialismo do século XXI", afirma.
O risco, alerta, é que se estes governos mais fracos fracassarem poderão vir, depois, populismos autoritários.
Os perigos estão no ar e a esquerda já está se articulando para relançar iniciativas de integração regional na América do Sul. Em seu discurso de vitória, no domingo, Petro prometeu honrar um dos compromissos da Constituição colombiana de 1991: a unidade latino-americana.
O ex-presidente da Colômbia Ernesto Samper (1994-1998) foi convocado pelo presidente da Argentina, hoje no comando da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) para debater com outros colegas e elaborar propostas para reativar a integração na região. As primeiras ideias, confirmou Samper ao GLOBO, devem ser apresentadas num encontro em Buenos Aires, em agosto.
"Não se trata de criar algo novo. Poderemos reativar a União de Nações Sul-americanas (Unasul), com temas novos. Mas também temos de fortalecer a Celac, com uma agenda de temas comuns, como o combate à desigualdade, soberania alimentar, mudanças climáticas. O que não podemos mais, e nisso fracassaou a direita, é ideologizar as relações internacionais", aponta Samper, último secretário-geral da desativada Unasul.
Na visão do ex-presidente, “os novos líderes progressistas mantêm temas em comum com líderes passados, mas incorporam outros do futuro, como inteligência artificial, mudanças climáticas e soberania alimentar”.
"São menos idealistas e mais pragmáticos", diz.
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