Por que o aborto deveria ser tratado como uma questão de saúde pública
Segundo a OMS, entre 2010 e 2014, ocorreram no mundo cerca de 55 milhões de abortos, dos quais 45% foram realizados de forma insegura
Um projeto de lei para manter o aborto legal nos Estados Unidos, criado mediante um parecer da Suprema Corte, que deve derrubar esse direito, foi derrotado em votação no Senado na última quarta-feira (11) , com 51 votos contrários e 49 favoráveis.
Em meio à forte oposição republicana, todos os senadores do partido conservador votaram para bloquear a medida, além do democrata Joe Manchin, conhecido por seu bipartidarismo em questões como aborto, imigração e controle de armas.
A ser divulgado em junho, o veredito da Suprema Corte pode derrubar a decisão histórica de 1973, que garante o direito ao aborto legal e seguro em todo o país, e deixar a cargo de cada estado determinar suas próprias políticas de aborto — da mesma forma como ocorre com a pena de morte, por exemplo. Até o momento, pelo menos 22 estados norte-americanos já têm projetos destinados a limitar o acesso ao aborto caso a decisão seja revogada.
Segundo a ginecologista Helena Paro, membro do Comitê de Aborto Seguro da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO, na sigla em inglês), apesar de muito se dizer que o aborto é um "tabu" ou uma questão "polêmica", o procedimento é, na realidade, um "tratamento de saúde", e deveria ser tratado como tal pelas autoridades competentes.
Isso porque o aborto legal e seguro, isto é, feito da maneira adequada e menos invasiva possível, evita uma série de complicações, e até mesmo a morte, de muitas mulheres que buscam interromper uma gravidez.
De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), entre 2010 e 2014, ocorreram no mundo cerca de 55 milhões de abortos, dos quais 45% foram realizados de forma insegura. No Brasil, dados sobre aborto e suas complicações são incompletos. Mas, de acordo com a última edição da PNA (Pesquisa Nacional de Aborto), realizada pelo Anis Instituto de Bioética e pela UnB (Universidade de Brasília), em 2015, 417 mil mulheres nas áreas urbanas do Brasil realizaram um aborto. Se incluída a zona rural, esse número sobe para 503 mil.
"O aborto sendo descriminalizado ou não, a realidade é que mulheres abortam. A lei não impede que elas busquem esse tipo de procedimento. O que ocorre é que as ricas abortam em segurança, enquanto aquelas que não têm dinheiro acabam tendo uma série de complicações, ou até mesmo mortas", afirma Helena.
"Além disso, não é incomum ver mulheres que acabam recorrendo a objetos pontiagudos, substâncias cálsticas e até mesmo agressões contra a própria barriga, em uma tentativa desesperada de terminar com a gravidez. Algumas, inclusive, chegam a pensar até em suicídio, pois não veem outra maneira de terminar com a gravidez senão terminar com a própria vida. Não é só uma questão de saúde pública, é também uma questão de saúde individual", completa.
A realidade do aborto legal no Brasil
Segundo o artigo 128 do Código Penal, no Brasil, a mulher tem direito ao aborto em três casos: se a gravidez é decorrente de estupro, representar risco à vida da mulher ou no caso de anencefalia fetal, ou seja, quando não há desenvolvimento cerebral do feto. Por lei, qualquer hospital que ofereça serviços de ginecologia e obstetrícia deve ter equipamento adequado e equipe treinada para realizar abortos nas situações previstas em lei. Mas, não é isso o que ocorre na prática.
Uma lista que consta no site do Mapa do Aborto Legal, realizado pela ONG Artigo 19 e atualizada pela última vez em 2019, mostra que pelo menos 64 hospitais de lugares de todo o Brasil não realizam aborto legal nas situações previstas em lei, o que é inconstitucional.
De acordo com a coordenadora da ONG, Julia Rocha, a lei permite que um profissional declare "objeção de consciência" e não realize o aborto caso isso vá contra seus valores, mas, a instituição, em si, não pode se negar a cumprir com o seu dever.
"Isso significa que, caso um profissional alegue objeção de consciência, o hospital precisa procurar outra pessoa dentro do quadro de funcionários para realizar o aborto. Se não houver nenhum outro profissional em serviço, em teoria, ele é obrigado a fazer de qualquer maneira. Mas, como sabemos, muitos hospitais se recusam a prestar esse tipo de atendimento", diz.
Diante das circunstâncias, muitas mulheres que buscam um aborto se veem frente a duas alternativas possíveis: viajar para outra cidade ou estado, onde há hospitais de referência em aborto legal — como o Hospital Pérola Byington, em São Paulo — ou procurar realizar o procedimento na clandestinidade. Sem recursos para se deslocar, muitas não veem alternativa a não ser optar pela segunda, que ocorre sem a menor garantia de segurança. Mas, o problema não para por aí.
Métodos abortivos inseguros
Segundo Helena, o aborto é um tratamento de saúde que pode ser realizado de duas maneiras: medicamentosa ou cirúrgica. As evidências científicas mais sólidas, bem como relatórios da OMS, sugerem que o tratamento medicamentoso pode ser manejado pela própria mulher, em sua casa ou onde ela preferir. Os remédios podem ser ingeridos, colocados debaixo da língua ou inseridos na vagina.
Com a medicação mais indicada — a chamada Mifepristona —, a taxa de eficácia é de, em média, 98%. O método é considerado muito seguro e tem baixíssimos índices de complicações graves. A mesma coisa vale para o procedimento cirúrgico conhecido como aspiração intrauterina, recomendado pela OMS como o menos invasivo para a interrupção da gravidez.
No Brasil, no entanto, não é desta forma que se realizam a maioria dos abortos — pelo menos não aqueles realizados legalmente, no sistema público de saúde.
"Muitos hospitais ainda recorrem a um procedimento cirúrgico obsoleto conhecido como curetagem [que consiste em esvaziar o interior do útero com o auxílio de uma cureta, instrumento cirúrgico em forma de colher]", afirma a ginecologista.
"Além disso, a Mifepristona [que, como dito, é o medicamento mais indicado em casos de aborto], não está disponível no sistema público de saúde. Há apenas o chamado Miseprastol, apresentado comercialmente como Cytotec, que tem uma eficácia menor. A mulher, então, precisa tomar uma dose mais alta do remédio para que se alcance o efeito desejado e, por conta disso, acaba sofrendo diversos efeitos colaterais, como dor, febre, náusea e diarreia", completa.
Um artigo publicado pelo médico Bruno Baptista Cardoso, da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, com outros profissionais da saúde, aponta que, de 2008 a 2015, 200 mil mulheres foram internadas por procedimentos relacionados ao aborto no Brasil. Dessas, cerca de 2 mil haviam realizado abortos legais.
Durante esse período, a curetagem foi procedimento descrito em aproximadamente 95% dos casos, enquanto a aspiração intrauterina foi utilizada em apenas 5% deles. O artigo sugere ainda que aquelas que mais sofreram complicações são as mulheres pretas, pobres, indígenas e das regiões Norte e Nordeste do Brasil.
"Não é do meu conhecimento, mas todo mundo sabe que existe aborto seguro no Brasil. Ou seja, uma brasileira de classe média alta não precisa ir para a Europa para fazer um aborto seguro. Aqui mesmo, ela consegue ter acesso ao Mifepristona ou à aspiração intrauterina. O acesso ao aborto seguro no país é um privilégio de classe ", diz Helena.
"A grande verdade é que a realidade do aborto no Brasil reflete uma negligência do Estado, que é feita de forma intencional. O patriarcado precisa ter o controle sobre o corpo da mulher, sobre os planos de vida dessa mulher. Nossa sociedade foi moldada para que as mulheres ocupassem lugares inferiores. Da mesma forma como existe o racismo estrutural, também existe a negligência médica estrutural que oculta vários conhecimentos sobre o aborto no nosso país", completa.
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