Protesto contra a criminalização do aborto
Fernando Frazão/Agência Brasil
Protesto contra a criminalização do aborto

Na noite da última segunda-feira (2), a versão preliminar de um relatório do ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos, Samuel Alito, acendeu o debate sobre o aborto no país. O documento ainda não é definitivo, mas indica que a Corte pode reverter uma decisão histórica, tomada em 1973, e permitir que os estados decidam, individualmente, sobre a prática.

Aqui no Brasil, o assunto segue sendo um tabu, e evitado ao máximo até mesmo em campanhas políticas - até mesmo Lula, que já governou o país por dois mandatos, precisou se explicar ao tocar no assunto, preocupando aliados e municiando adversários .

Para Taylisi de Souza Corrêa Leite, professora do Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA e doutora em Direito Político e Econômico, é passada a hora do amadurecimento do debate sobre a questão que deveria ser vista como uma pauta de saúde pública.

"O Brasil precisa entender a descriminalização do aborto do ponto de vista legal, dentro de um espectro de direitos fundamentais das mulheres sobre o próprio corpo, e das políticas públicas de saúde. Nós não estamos defendendo a legalidade do aborto como um método contraceptivo, até porque a interrupção da gestação coloca a mulher em uma situação de intenso sofrimento. É invasivo, sofrido e arriscado", afirma.

"Se o aborto fosse descriminalizado, as mulheres não 'sairiam por aí' abortando, porque é drástico. O que se defende é a descriminalização. Quando você tira da esfera penal, obriga o estado a fazer uma regulamentação. Políticas e serviços públicos — inclusive preventivos, teriam que ser criados, como controle de natalidade, planejamento familiar, educação sexual, para que as pessoas não precisassem chegar a esse nível de intervenção e pudessem optar por outros métodos".

A lei brasileira permite que mulheres interrompam a gravidez em apenas três situações: estupro, em até as 20 semanas de gestação; quando há risco de vida para a mulher ou feto anencéfalo.

Quem aborta fora dessas condições, se denunciada, pode ser condenada de um a três anos de prisão. O médico pode ser condenado a até quatro anos. Alheios à lei, na prática, os procedimentos continuam acontecendo.

Segundo um levantamento do G1 com base no DataSUS, em 2020, quase 81 mil mulheres foram atendidas pelo SUS no primeiro semestre por complicações após um aborto mal-sucedido, número 79 vezes maior do que o de interrupções previstas em lei. Grande parte das mulheres submetidas ao procedimento, porém, não sobrevivem e sequer entram nessas estatísticas.

"Na prática, as mulheres tem escolhido, mas quem tem poder econômico faz isso de forma segura. Quem para quem não tem — as pobres, e também negras, por que há aí um atravessamento racial — o que acontece é um morticínio de mulheres. E isso se torna um imenso problema de saúde pública, porque quando há uma complicação na prática clandestina, é para o SUS que as mulheres vão, sobrecarregando esse sistema", alerta Taylisi.

"Se fosse feito de forma segura, com assistência médica, talvez tivéssemos menos problemas, menos mortes. Na prática, mulheres com poder aquisitivo abortam, as pobres, não, e a gente sustenta hipocritamente isso num atravessamento religioso dentro de um estado que deveria ser laico", prossegue.

"Precisamos amadurecer a discussão, trazer da superficialidade moralista e sermos mais consequentes na abordagem de fatos que são públicos, e deviam ser objeto de debates públicos, e não pessoais, moralistas e de convicções religiosas, que não podem se impor a outras pessoas."

Consequências nos Estados Unidos

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Na prática, caso a decisão seja confirmada pela Suprema Corte dos EUA, o que pode acontecer no mês de junho, cada estado poderá decidir se o procedimento será legal ou não. A especialista em direito explica como isso se dá no país.

"Os EUA têm uma federação plena, todas as unidades federativas têm total autonomia, legislativa, judiciária e executiva. Aqui no Brasil não, temos matérias privativas da União que não podem ser objeto de política pública por parte dos outros entes da federação. Isso significa que, por norma, cada estado tem sua própria legislação e plena autonomia", diz.

"Há, no entanto, um direito que chamamos de 'costumeiro', construído mais em reiteradas decisões a partir de casos emblemáticos do que uma legislação positiva, nos moldes de um código penal ou código civil. É por isso que essas decisões emblemáticas criam jurisprudência e constituem o direito sobre a legislação positivada. Esses casos de 1973 [Roe v. Wade], de 1992 [quando se decidiu que o aborto era permitido até que a vida do bebê fosse viável fora do útero], eles homogenizam e vinculam toda jurisprudência dos EUA e interditam a autonomia dos estados".

O que é Roe v. Wade

Em 1973, a jovem Norma McCorvey, conhecida como Jane Roe, tentou interromper sua terceira gravidez em uma clínica clandestina do Texas. Desempregada, morando na rua e usuária de drogas, ela havia perdido a guarda dos dois primeiros filhos. O estado, porém, só permitia o aborto em caso de risco à vida ou violência sexual, mediante autorização judicial.

Roe encontrou duas advogadas que buscavam um caso do gênero para lutar contra a proibição. Depois de uma batalha nos tribunais, houve o entendimento favorável na Suprema Corte por 7 votos a 2.

E o que representaria uma mudança nesse entendimento?

Com uma economia consolidada no seguimento, a mudança atingiria não só as mulheres e seus direitos, mas também a economia do país, que já passa por uma crise.

"Se a Suprema Corte volta atrás na sua orientação, isso faz com que os EUA retrocedam a antes de 1973. Os estados mais reacionários no sul e no centro sul, aqueles que são currais eleitorais dos Republicanos, e tem mais representatividade nos parlamentos, provavelmente passariam essas legislações. Haveria um movimento de criminalização das práticas abortivas trazendo um retrocesso imenso", afirma.

"Esse caso de 1992 envolve a Planned Parenthood, uma grande empresa de clínicas. Eles são um império especializados em direitos pré-natais, direitos reprodutivos, ginecologia e obstetrícia, além de prática de interrupção. Você quebra um setor da economia e outros relacionados. Toda uma atividade econômica lícita, estabelecida desde os anos 1970, seria levada para a ilegalidade."

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** Filha da periferia que nasceu para contar histórias. Denise Bonfim é jornalista e apaixonada por futebol. No iG, escreve sobre saúde, política e cotidiano.

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