Conheça o Talibã, grupo que voltou aos noticiários após a retomada de Cabul
Milícia surgiu após ocupação soviética, recorrendo a fidelidades étnicas e visões distorcidas do Islã, e retoma posição de força pouco antes de retirada militar dos EUA
Em uma ofensiva-relâmpago que começou há duas semanas, o Talibã avançou neste domingo sobre Cabul e anunciou ter tomado o palácio presidencial do Afeganistão depois da fuga do presidente pró-Ocidente, Ashraf Ghani. O grupo fundamentalista recuperou o poder no país da Ásia Central duas décadas depois de ser derrubado na invasão americana de 2001, quando foi acusado de dar abrigo a Osama bin Laden, arquiteto dos atentados do 11 de Setembro daquele ano.
O Talibã reassumiu, nas últimas semanas, a posição de força que tinha no começo do século XXI, coincidindo com a iminente saída das forças estrangeiras contra as quais lutou nas últimas duas décadas. A ofensiva levou governos de outros países a retirarem seus cidadãos, e deixa aterrorizada uma população que viveu as políticas extremistas do grupo, cuja trajetória se confunde com as raízes da história afegã.
Criado em 1994, nos escombros da ocupação do Afeganistão pela União Soviética (1979-1989), o Talibã é ligado à etnia pachto, majoritária no país e que participa ativamente da política local há séculos. Ahmed Shah Durrani (1722-1772), apontado como o fundador do Estado afegão moderno, era pachto, assim como boa parte de sua corte e dos exércitos que combateriam inimigos internos e e estrangeiros nos séculos seguintes.
Nos séculos XIX e início do XX, os britânicos empreenderam três guerras contra as forças afegãs, sofrendo reveses inesperados no campo de batalha — afinal, eram o maior império do planeta na época, e enfrentavam adversários com uma capacidade militar inferior. Nelas, obtiveram apenas um sucesso em 1880, e se retiraram em definitivo em 1919, depois de mais uma derrota.
Décadas depois, no contexto da Guerra Fria, o Afeganistão voltaria a ser invadido por uma potência estrangeira, a URSS. Em 1978, um violento golpe assassinou o presidente Mohammad Daoud e as lideranças que assumiram o poder deram início a um plano radical de reformas, marcado pela centralização da economia, perseguição a adversários e um caráter anti-islâmico.
Revoltas de milícias islâmicas colocavam em xeque o regime pró-Moscou e ameaçavam a integridade do Estado. Com isso, a URSS, temendo pela segurança de suas fronteiras e pela chegada de um governo hostil, invadiu o Afeganistão em dezembro de 1979.
Dinheiro e mísseis
Como os britânicos, os soviéticos obtiveram vitórias iniciais, contando com ataques aéreos e tropas bem equipadas. No entanto, fatores externos mudaram o cenário. No início dos anos 1980, dinheiro vindo do Paquistão e, especialmente, dos Estados Unidos, começou a chegar aos insurgentes, além de armas mais sofisticadas, como os lançadores de mísseis Stinger, que derrubaram dezenas de helicópteros. Voluntários de todo o mundo receberam treinamento e armas. Entre eles, estava Osama bin Laden, o saudita que fundaria a rede al-Qaeda.
Os soviéticos saíram em fevereiro de 1989, deixando um país arrasado. Tentativas de manter um governo funcional fracassaram, e os chamados “senhores da guerra” dividiram o Afeganistão entre si — algo que um grupo de estudantes de escolas religiosas no Paquistão via como inaceitável, e defendia uma mudança radical: era o nascimento dos talibãs, “estudantes” em pachto.
A ideologia do grupo tem como elemento central o Pashtunwali, código que rege a vida dos pachtos com valores como a bravura, a lealdade e o dever de proteger a própria cultura. O outro elemento é a visão extremista e distorcida do Islã, herdada de linhas de pensamento radicais das escolas religiosas.
Liderados por um veterano da guerra contra os soviéticos, o recluso mulá Omar, os talibãs conquistaram territórios ao redor do país, seja pelas ideias ou pela força. Em 1996, eles invadiram Cabul, fundando o almejado Emirado Islâmico.
Os cinco anos seguintes foram marcados por violações graves dos direitos humanos: mulheres passaram a ser impedidas de sair de casa e obrigadas a usar a burca, veste que cobre todo o corpo e que se tornaria símbolo da repressão. Supostas violações da lei islâmica eram punidas com a morte. Minorias eram obrigadas a pagar taxas adicionais ou fugir para não serem levadas aos tribunais religiosos.
O regime se mantinha com o apoio de Paquistão e Arábia Saudita, e não parecia ceder às ameaças estrangeiras —internamente, conseguia conter avanços de grupos inimigos, como a Aliança do Norte, seu principal rival neste período.
Mas o ocaso não viria de inimigos internos, e seria acelerado por um aliado: desde 1995, o grupo abrigava a rede terrorista al-Qaeda, de Osama bin Laden, o playboy saudita dos anos 1970 que adotou o jihadismo como estilo de vida após a invasão soviética.
Depois da primeira Guerra do Golfo, em 1991, quando os americanos instalaram bases militares na Arábia Saudita, a al-Qaeda declarou guerra aos Estados Unidos. A partir daí, o grupo comandou ataques ao redor do planeta, tendo como alvos embaixadas americanas na África e navios no Mar Vermelho, deixando centenas de mortos e marcando um novo capítulo no terrorismo religioso. A al-Qaeda controlava partes do território afegão, perto da fronteira com o Paquistão, atuando em combates e cometendo atrocidades contra civis. A situação relativamente confortável mudaria na manhã de 11 de setembro de 2001.
O sequestro de quatro aviões dentro dos EUA —dois deles arremessados contra as Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova York, um contra o Pentágono e um quarto que caiu antes de chegar à capital americana — levou à mobilização da Otan, a aliança militar criada para se opor ao bloco socialista na Guerra Fria. O Artigo 5º da organização, segundo o qual um ataque contra um é um ataque a todos, seria aplicado contra a al-Qaeda e, por consequência, o Talibã.
Queda e nova ascensão
Sem aliados, o Talibã recebeu um ultimato para entregar as lideranças da al-Qaeda. O governo do grupo chegou a emitir uma ordem de expulsão, mas isso não impediu que as bombas começassem a cair em outubro de 2001, pondo fim ao regime e instaurando um governo pró-Ocidente. Bin Laden seria morto dez anos depois, nos arredores de Islamabad, no Paquistão.
Nos anos seguintes, um antigo ditado afegão resumiu a estratégia do Talibã: “Vocês (estrangeiros) têm os relógios, nós temos o tempo”. Após a intervenção, a milícia passou a organizar uma insurgência similar à vista contra os britânicos e os soviéticos. Um conflito que deveria durar meses ou alguns anos, se arrastou por duas décadas, ao custo de trilhões de dólares e centenas de milhares de vidas.
Além das armas, o Talibã adotou os atentados, atingindo bases militares e o novo governo afegão, visto como “anti-islâmico”. Expressões como “atoleiro” e “guerra sem fim” estamparam com frequência as análises sobre o conflito.
Na década passada, o grupo se aproveitou de reduções de tropas estrangeiras e da fragilidade das forças de segurança para ações recorrentes. A partir de 2020, depois da assinatura do acordo com os EUA que previa a retirada das forças estrangeiras em troca da participação do Talibã em negociações de paz, a ofensiva ganhou corpo, e a paz naufragou.
Agora, o Talibã está perto de retomar Cabul, quase 20 anos depois de ter sido derrubado do poder, e voltar a impor seu regime extremista, diante dos olhares atônitos da comunidade internacional.