2024 foi, sem dúvidas, o ano das bets no Brasil. O termo em inglês – que vem do verbo to bet, apostar – é como as apostas esportivas ficaram conhecidas na nova roupagem online. A apenas um site ou aplicativo de distância, as plataformas caíram no gosto popular com (intensa) divulgação na mídia, parcerias com influenciadores e patrocínio de grandes eventos. Nesse mundo das apostas, porém, o que não faltam são polêmicas, desde a discussão acerca da sua legalidade até escândalos de manipulação e lavagem de dinheiro. Poderia, então, o fenômeno das bets ser abordado nas provas e vestibulares?
Fato é que, antes de tudo, é preciso lembrar que nem toda prova tem suas questões formuladas no mesmo ano da sua aplicação. No Enem , por exemplo, a banca executa anteriormente um extenso processo de formulação, teste e adaptação das questões, algo que pode levar até anos. O que não significa, claro, que a prova não seja atual: a curadoria e seleção das questões, assim como a adaptação dos enunciados, seguem as principais discussões da atualidade – uma vez que essa é também uma característica fundamental do exame.
Já em outras provas, como Fuvest e Unicamp , é comum encontrar questões que abordam diretamente os acontecimentos do ano, cobrando do candidato uma postura ainda mais antenada.
“Os vestibulares, como meio de suscitar reflexões pertinentes na comunidade estudantil e seus correlacionados, levanta também o debate público”, afirma Guilherme Suman , professor de literatura do Aprova Total. “As questões das provas podem elaborar alguma forma de denunciar as sensíveis consequências das bets a fim de instruir jovens e discentes sobre isso.”
Para ele, o vestibular poderia, de alguma forma, abordar o contexto no âmbito familiar e da saúde mental, e também em relação à regulamentação e à economia ligada às plataformas. Thais Pereira Formagio , professora de Geografia e Atualidades do Poliedro Curso, adiciona ainda que a prova de Ciências Humanas pode utilizar do fenômeno para falar sobre o “a dinâmica da geografia econômica e os aspectos sociais e culturais”.
Já o professor Piu , que dá aulas de Matemática no Aprova Total, alerta também para a presença da temática em questões de exatas. “Os candidatos podem ser desafiados a calcular probabilidades de eventos e analisar o impacto de margens de lucro em contextos de apostas.”
O GUIA DO ESTUDANTE compilou as respostas dos professores e lista 4 formas que as bets podem ser cobradas nos vestibulares .
1. Legalização e regulamentação no Brasil
As apostas esportivas não são uma novidade. Já entre 4.000 e 3.000 a.C., os antigos egípcios apostavam em jogos de dados, tabuleiros e corridas de bigas (carroça de duas rodas). Na Grécia Antiga, o hábito era ainda mais propagado com a realização dos Jogos Olímpicos. Atualmente, no Brasil – que, vale citar, é um país com fortes vínculos tanto com esportes quanto com jogatinas –, observa-se a predominância do futebol nas apostas. As bets promovem a adivinhação desde os vencedores e placares até a quantidade de faltas e os responsáveis pelos gols.
As apostas esportivas foram legalizadas no Brasil em 2018, por meio da Lei nº 13.756/18 , passando a autorizar a realização de apostas esportivas no país, desde que em casas que estejam de acordo com as normas e leis instituídas. No entanto, o que se observou foi a coordenação de fatores para que se burlassem as regras determinadas pela lei e, assim, escapar dos impostos que passaram a ser cobrados pelo governo – que, segundo o próprio, teria resultado na perda de R$24 bilhões.
“A maioria das casas de apostas que atuam no Brasil tem seus capitais investidos em centros offshore , que já foram cobrados pela prova da Unicamp e são conhecidos como paraísos fiscais”, explica a professora Thais. “O dinheiro dos brasileiros é movimentado, mas está em outro país, o que gera um impacto na nossa economia, especialmente em relação à arrecadação de impostos.”
O impacto na economia brasileira levou o presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) a sancionar o Projeto de Lei nº 3.626/23 , em dezembro de 2023, que altera a lei original das apostas esportivas. Entre as mudanças, o PL determina a cobrança de 15% do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) sobre o valor líquido dos prêmios; deste valor arrecadado, 88% seriam destinados ao custeio e manutenção do agente operador, enquanto os outros 12% seriam divididos entre investimentos na área da educação, segurança pública, esporte, seguridade social, turismo e saúde, respectivamente. A lei passou a valer em todo o país em 1º de abril de 2024.
2. Promoção do vício: impactos na saúde mental
Ainda que inofensivas à primeira vista, as apostas representam um perigo assustador à saúde mental . Os mais recentes estudos apontam, principalmente, a promoção de vício nas plataformas, que utilizam de gatilhos mentais para manter o usuário engajado em um ciclo de apostas.
A condição pode avançar para algo mais sério, uma condição psiquiátrica conhecida como “transtorno do jogo”, ou ludopatia. Isto é, a promoção de prejuízos financeiros, mentais, físicos e emocionais por conta da dificuldade de estabelecer limites na prática da atividade.
“O chamado ‘transtorno do jogo’ é preocupante. Como fator sintomático, salienta-se a busca por recuperar perdas (‘loss-chasing’, em inglês), algo que pode levar a um ciclo vicioso de dívidas e complexo estresse financeiro”, explica o professor Guilherme. “O transtorno pode afetar a saúde mental e social dos sujeitos de maneira alarmante. Danos sociais incluem a redução de gastos com necessidades básicas, como alimentação e vestimenta, complicando a vida de apostadores e suas respectivas famílias.”
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3. Endividamento familiar
Nos primeiros sete meses de 2024, 25 milhões de novos usuários aderiram às apostas esportivas, uma média de 3,5 milhões de novos apostadores todo mês. O crescimento é vertiginoso – e assustador. Para se ter uma noção, 52 milhões é o número total de brasileiros que apostaram em bets nos últimos cinco anos, o que faz destes novos usuários quase metade do total, 48%. Estima-se ainda que do total de apostadores, 86% fique endividado com o jogo em algum momento.
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Os dados são da pesquisa do Instituto Locomotiva . Em entrevista com apostadores, 45% admitem que apostar nas bets “já causaram prejuízos financeiros”, enquanto 37% afirmam ter usado “dinheiro destinado a outras coisas importantes para apostar online”. Ainda de acordo com os dados obtidos, 8 em cada 10 usuários são pertencentes às classes C, D e E. Enquanto apenas 2 em cada 10 são da classe A ou B.
“Fazendo um recorte de classes, é possível identificar como o vício em apostas pode gerar impactos econômicos em famílias mais vulneráveis”, explica Thais. “Já existem dados de redes de telefonia que mostram que pessoas de baixa renda estão se endividando por conta das apostas online.”
O vestibular pode cobrar este assunto até mesmo em um aspecto mais direto, uma abordagem conscientizadora. “Por meio de um texto científico, artigo, matéria de natureza informativa, acadêmica que demonstre os efeitos prejudiciais desse tipo de atividade, dos frutos negativos do vício – e suas repercussões na saúde mental, na saúde social, etc. O Enem , por exemplo, se dedica bastante em provocar esse tipo de reflexão durante o concurso”, pontua Guilherme.
4. Manipulação das probabilidades
“Qualquer pessoa que joga cara ou coroa tem 50% de chance de ganhar, certo?”, pergunta o professor de Matemática Piu. “Metade de chance para cada lado. Em um jogo justo, quem ganhar fica com o dinheiro do outro. Ou seja, se ambos apostam quantias iguais, o vencedor dobra o valor apostado”.
Segundo ele, o grande problema das bets é que, embora elas consigam calcular a probabilidade de um evento acontecer (um jogador levar falta, um time vencer, um placar ser 0x0), nunca pagam o valor justo, porque precisam de uma margem para funcionar.
“Existe uma relação entre a probabilidade e o que eles chamam de ‘odds’ (a taxa de retorno). Quanto menor a probabilidade de algo acontecer, maior o retorno prometido”, continua. “Porém, mesmo que esse retorno pareça alto, ele ainda é menor do que deveria ser, de acordo com a probabilidade estimada pela casa de apostas”.
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Para o docente, as plataformas de aposta esportivas são projetadas para, a longo prazo, o usuário acabar perdendo. A ausência de instruções em educação financeira e conhecimento matemático básico pode se tornar uma armadilha para jogadores que se encantam com a possibilidade de dinheiro “fácil”.
Na avaliação de Piu, o tema é altamente relevante para as questões de Matemática. “Questões de probabilidade, estatística e raciocínio lógico são frequentemente cobradas, e o exemplo das casas de aposta pode ser utilizado para explorar esses conceitos de forma aplicada”. O professor pontua que é comum os vestibulares utilizarem de exemplos do cotidiano para abordar a importância do pensamento matemático – ao exemplo de questões envolvendo juros bancários e investimentos.
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“Ao trazer um caso real como o das casas de apostas, os examinadores podem pedir que o estudante calcule o ‘valor esperado’ de um jogo ou avalie os riscos de um investimento de alto retorno. Esse tipo de abordagem exige que o aluno tenha um bom domínio de probabilidade e análise de risco, habilidades essenciais tanto para o vestibular quanto para a vida financeira.”
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