Ensino domiciliar está em discussão na Câmara dos Deputados
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Ensino domiciliar está em discussão na Câmara dos Deputados

O projeto de lei que regulamenta o ensino domicilar no Brasil, conhecido também como homeschooling, pode ser votado na Câmara dos Deputados ainda no começo desse mês.

Na semana passada, Luisa Canziani (PSD), relatora do processo, apresentou seu parecer impondo algumas restrições, como a exigência de uma formação mínima para que os pais possam ensinar os filhos em casa, sem que isso comprometa sua formação e segurança.

O documento gerou resistência por parte da bancada evangélica, a mais interessada na aprovação, que não concordou nem com a questão da formação, nem com a necessidade de comparecimento do aluno em uma escola regular em caso de seguidas reprovações. Os partidos de esquerda se mantêm contra a iniciativa.

O que educadores pensam do assunto? O iG ouviu profissionais para compreender como essa mudança, se aprovada, pode impactar na educação básica em todo o país. Vale lembrar que em 2019, o STF (Supremo Tribunal Federal) determinou que a prática é inconstitucional até que haja uma regulamentação em lei.

Para Marina Nordi Castellani, pedagoga e fundadora da Escola Mais, de São Paulo, a socialização das crianças e jovens é um dos principais aspectos a serem observados quando o assunto é retirá-los da escola.

"Desde a educação infantil, aliás principalmente da educação infantil e fundamental I, a gente está enxergando a escola como espaço cultural, educacional, mas é um espaço que vai ter a sua própria cultura que contribui diretamente para o desenvolvimento de cada um dos sujeitos envolvidos nesse aspecto social", afirma.

O projeto estabelece que os conteúdo ensinados devem ser consistentes com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o documento normativo que orienta quais são as aprendizagens essenciais para os alunos ao longo das etapas da educação básica.

Para a educadora, é "muito difícil" que pessoas sem formação técnica consigam "dialogar com esse documento". Ela cita que em países onde o ensino domiciliar já existe, um material específico é adotado.

"Cada escola constrói o seu currículo a partir da base, e vai traçar meios pedagógicos e didáticos de colocar aquilo em prática. Em países que praticam o ensino domiciliar, isso é feito por meio de um material elaborado pelo governo, entendo que seria necessário que isso existisse. E o material, em si, garante, o currículo em diálogo com a BNCC. Acho muito desafiador, exige um profissionalismo e dedicação. Nós temos uma equipe inteira para estudar BNCC e construir esse currículo", afirma.

"É muito conteúdo, e é um documento técnico, que exige preparo, uma formação na área para que você dialogue com aquele documento, traduza em um material e em uma estratégia didática. A gente tem que entender que a educação é profissionalizada na escola, não é intuitiva, é técnica. E a BNCC, com todas as críticas, foi produzida por técnicos com alguns anos de debates, sustentações filosóficas e científicas variadas. Temos que continuar tratando isso desse jeito".

Guilherme Lichand, professor de Economia do Bem-estar e Desenvolvimento Infantil da Universidade de Zurique e presidente do conselho da edtech Movva, não acredita que a BNCC será cumprida, e vê na discussão, uma forma de criar uma espécie de currículo paralelo.

"O currículo do homeschooling tem que ser idêntico, mas quem é que vai controlar isso? Como a gente vai saber se essa criança está aprendendo seleção natural na aula de biologia ou o criacionismo? Não tem como garantir. As crianças, mesmo quando aprendem a BNCC, tem um desepenho pífio nas avaliações. Imagina sem ela", pontua.

"Se a criança tiver um desempenho ruim, você não saberá se ela não foi ensinada ou apenas não aprendeu. Então, não tem como garantir. E é por isso que esse projeto foi desenhado pra isso. Em última instância, ele está tentando agradar setores da sociedade, e em particular, o público evangélico que discorda do currículo que ensina, por exemplo, a seleção natural ao invés do criacionismo", afirma.

Andreia Deis, educadora e pedagoga, afirma que cercear o contato da criança com culturas e costumes diferentes não só prejudica o desenvolvimento, como produz reflexos que poderão ser sentidos apenas na vida adulta.

"Quando você diminui o contato social entre as pessoas, diminui também a visão do tamanho do mundo, do contexto, das histórias. O adestramento é muito maior, e não existe a crítica porque ninguém critica o que nao conhece. Quando você quer manter o seu olhar, sua base, uma criação que seja mais adestradora, que seja mais conservadora, que ela não consiga enxergar outras possibilidades, sejam boas ou não, você restringe o contato social que essas crianças e adultos tem".

"E a gente tem que tomar muito cuidado com isso, o mundo é muito maior que uma religião, que uma crença. E lá na frente eles vão ter que sobreviver, pais e mães não são eternos. Precisamos prepará-los, eles vão ter contato com esse mundo. Hoje a OMS diz que o ser humano é biopsicossocial e espiritual. Desenvolver a espiritualidade não significa que a socialização vai impedir o desenvolvimento da sociedade. Você pode fazer isso, mas não pode limitar a inserção dessas crianças, porque elas vão aprender a lidar com isso no cotidiano. Se os seus valores forem esses, eles vão permanecer independente do contexto, mas hoje, a flexibilidade cognitiva e psicológica são as principais skils do mundo moderno, e a gente precisa estar atento a isso."

Para Lichard, que está desenvolvendo um estudo sobre os efeitos da pandemia no ensino básico, nesse momento, o país deveria estar empenhado em mitigar as perdas causadas pela covid-19 e a suspensão das aulas, principalmente no ensino público, que atende a cerca de 80% das crianças e jovens de todo país.

"O Brasil ficou mais de 700 dias com escolas fechadas. Foi um dos países que por mais tempo no mundo deixou suas crianças sem aulas presenciais. O meu estudo mostra que além das perdas de aprendizagem serem gigantescas, o risco de abandono escolar dessas crianças e jovens explodiu, e a gente só vai ver o problema no censo escolar que será divulgado em 2023", conta.

"A discussão que a gente deveria estar tendo é de como recuperar esses jovens na escola, como recuperar essas perdas de aprendizagem que a gente acumulou durante a pandemia, em vez usar recursos públicos e tempo da Câmara, do debate público, para falar sobre ensino domiciliar. A gente estar discutindo homeschooling, pra mim, é um absurdo. De novo, é um afronta que nossos deputados estejam usando seu tempo e seus recursos pra discutir essas coisas que interessam setores ultraespecíficos da sociedade. E que em última instância, estão tirando o foco do que a gente deveria realmente estar discutindo."

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** Filha da periferia que nasceu para contar histórias. Denise Bonfim é jornalista e apaixonada por futebol. No iG, escreve sobre saúde, política e cotidiano.

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