De um lado, são vistos prédios luxuosos no Morumbi, do outro, está ela: Paraisópolis, a segunda maior favela de São Paulo. Com cerca de 100 mil habitantes, segundo a Secretaria Municipal de Habitação e União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis, a comunidade vem sofrendo uma transformação em sua estrutura e em seu ecossistema educacional.
Afinal, com um processo de verticalização de Paraisópolis e a crescente preocupação local com o aprendizado de crianças e jovens, diferentes iniciativas têm surgido, ampliando o acesso à informação e abrindo portas para o mercado de trabalho.
Leia também: De brinquedos a exemplos: como abordar a igualdade de gênero dentro das escolas
De acordo com o último censo “Áreas de Divulgação da Amostra para Aglomerados Subnormais” elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, somente 1,6% dos moradores de favelas tinham curso superior completo, o que diminuía para 1,2% se levada em consideração somente a região Sudeste do País.
Oito anos após a pesquisa, a situação apresenta uma pequena melhora, com a presença de mais instituições, ONGs e iniciativas que potencializam a educação na segunda maior favela de São Paulo .
Exemplos disso são o Periferia Inventando Moda (PIM), que recentemente abriu a primeira universidade de moda gratuita na área, e o Voice – Inglês para Elas, que tem democratizado o acesso à língua inglesa em lugares periféricos. A reportagem do iG conversou com os dois projetos e descobriu como eles estão empoderando os moradores da região por meio da educação.
Moda como transformação social em Paraisópolis
Nil Mariano, fundador do Periferia Inventando Moda (PIM) juntamente com o estilista Alex Santos, conta que o projeto surgiu em 2014, depois de ser convidado pela coordenação de cultura do CEU Paraisópolis para promover uma ação na área de moda.
Com a ajuda de Alex e do também estilista João Pimenta, Nil ingressou na produção de um editorial, que envolveu adolescentes da comunidade, e mais tarde, de desfiles de formatura dos alunos de moda da Universidade Anhanguera e da oficina Recicla Jeans, da ONG Florescer.
Com a implementação de cursos como fotografia, auto maquiagem e oficinas de customização, a dupla quis dar um passo adiante. Por já morarem na comunidade, a escolheram como sede para a UniPIM, primeira faculdade gratuita de moda de Paraisópolis.
As oportunidades de trabalho acontecem como consequência.
Apoiada pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (Eca-USP), pela Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Moda (Abepem), pela Editora Estação das Letras e Cores e por diversas marcas de cosméticos, a iniciativa tem como intuito principal promover a inclusão social por meio da moda e da beleza.
Para Nil e Alex, a faculdade inaugurada em março deste ano tem evidenciado um retorno positivo, o que refletirá na ampliação da grade de conteúdo, que oferece a oficina de imersão “Start” – um único encontro com oito horas de duração focado na dinâmica de atuação em diferentes áreas ligadas à moda – e o ciclo de encontros “Pensando Moda”, que consiste em palestras e rodas de conversação com profissionais do nicho.
Os fundadores ressaltam que a UniPIM, em específico, tem um grande atrativo que é oferecer, por meio da tendência de consumo e comportamento, oportunidades de inserção no mercado de trabalho, diferentes do horizonte profissional do jovem da periferia, que geralmente adentra o meio empregatício em cargos de baixa qualificação.
“Procuramos desenvolver todas estas questões resgatando a autoestima, empoderamento e autoconhecimento. Tirar alguém de seu cotidiano, às vezes bastante duro, e colocar para treinar passarela, ser maquiado, fotografado e para estrelar um desfile é uma experiência transformadora. Isso é o mais importante. As oportunidades de trabalho acontecem como consequência”, explica.
A moda é um discurso potente e gerador de transformação.
Formada em Ciências Sociais, e doutora em Comunicação e Semiótica, a professora Kathia Castilho, também presidente da Abepem, atua como coordenadora educacional da instituição.
Junto à professora Clotilde Perez, Kathia estrutura um planejamento para a capacitação de parceiros. Ela afirma que por conta da demanda de sua função, ainda não conseguiu estar nas salas de aula, mas que está animada para saber o que os alunos pensam, onde querem chegar, e o que gostariam de propor para o desenvolvimento da iniciativa.
“A moda veste a história, veste nosso tempo e propõe leituras de mundos existentes. Assim, se nos vestimos, temos um discurso estruturado em nosso corpo que ora confronta, rebela e propõe alternativas de novos caminhos ora se apresenta de modo mais passivo", disse.
"Acredito que a moda é um discurso potente e gerador de transformação, e que este projeto significa ter a oportunidade de repensar propostas para uma atuação mais participativa, inclusiva e criativa na educação”, acrescenta.
Alan de Jesus e Letícia Cortes, de respectivamente 18 e 21 anos, são alunos da UniPIM e afirmam que o aprendizado tem os ajudado não só em sala, como também em projetos próprios.
Você viu?
Alan, que acabou de concluir o ensino médio, e atua como modelo para a PIM, alega que o curso de branding foi o que mais chamou sua atenção e que, por já gostar de moda e querer seguir carreira como estilista, resolveu arriscar. Ele garante que tem os professores como espelho, e que devido ao incentivo, voltou a trabalhar em sua marca de roupas, que deve ser lançada em 2020, trazendo estilo e acessibilidade a todos.
Ver a favela, que sempre foi excluída desse universo, conhecendo suas características e evidenciando sua estética, é revolucionário.
Já a estudante de jornalismo e modelo da PIM, Letícia, conta que sua marca Afrontosa, surgiu de mudanças pessoais internas e externas, e da necessidade de resgatar a autoestima e trazer representatividade para as mulheres negras. A fundadora da linha de acessórios e roupas alega que, depois de passar pela transição capilar e por um período de aceitação e reconhecimento de sua cultura e origens, começou a acompanhar pessoas que se pareciam com ela e a criar, para o mesmo grupo, levando os aprendizados da faculdade de moda de Paraisópolis para as passarelas, ruas, e cotidiano de pessoas de seu ciclo social.
Leia também: Mulher assume direção da Poli-USP pela primeira vez na história
“A moda nos refaz. É só olhar o PIM, cada pessoa que passou por ali, que conhece o projeto. A moda, por muito tempo, foi distanciada da população pobre, não era acessível falar sobre iniciativas e políticas sociais envolvendo esse ramo, talvez por acreditarem ser menos urgente se comparado a outras questões. Mas, para mim, a moda trouxe e continua trazendo muito empoderamento, ela me dá poder", pontua.
"Para uma mulher negra se reconhecer, se aceitar, é muito complicado, ainda mais com o padrão estético branco que nos é mostrado como ideal. Vivenciei que o empoderamento pode sim começar por uma roupa, um batom, um cabelo longe de processos químicos, por mais representatividade na indústria da beleza, e também, por iniciativas como essa", ressalta. "Ver a favela, que sempre foi excluída desse universo, conhecendo suas características e evidenciando sua estética, é revolucionário”.
Inglês para Elas
Envolvida em projetos voluntários desde muito nova, a designer gráfica Amanda Areias, 24 anos, relata que, no ano passado, decidiu dar um grande passo e criar a sua própria iniciativa. Tendo como principal objetivo diminuir a diferença de gênero no mercado de trabalho, mesmo que minimamente, o Voice – Inglês para Elas surgiu no Jardim Colombo, sendo totalmente voltado para mulheres.
Temos muitas alunas que nos dizem que essa é a primeira coisa que elas estão fazendo sozinhas na vida.
“Hoje o mercado de trabalho é majoritariamente masculino e há diversos estudos dizendo que os melhores cargos nas empresas são ocupados por homens. Capacitar mulheres em diferentes aspectos, é uma forma de fazer com que elas cresçam e, consequentemente, essa diferença no mercado de trabalho diminua. Além disso, elas se sentem muito mais à vontade na sala de aula, ficam mais desinibidas para praticar o idioma”, diz a fundadora.
Para Amanda, o inglês é também uma forma de empoderamento para essas 250 mulheres periféricas que já passaram pelo Voice, uma vez que se sentem mais confiantes tanto por aprenderem um idioma novo, quanto por estarem fazendo isso sozinhas, sem a presença do marido, irmão, primo, etc. “Temos muitas alunas que nos dizem que essa é a primeira coisa que elas estão fazendo sozinhas na vida”.
O curso de idiomas, que antes contava somente com o nível básico, ganhou mais um módulo no segundo semestre, aprofundando o conteúdo já trabalhado em sala. Atualmente, com todas as mudanças, e em seu terceiro semestre, o curso é composto por três níveis, nos quais as alunas aprendem não só o idioma, como também a história de mulheres importantes para a história, e até mesmo elementos culturais africanos. Amanda explica que o curso avança conforme a melhora da classe e que, por isso, não define um período final para o mesmo.
Ela relata que o projeto será expandido, e que contará com a realização de iniciativas paralelas aos sábados, como palestras, oficinas e workshops sobre economia pessoal, política, e empreendedorismo. Em relação ao corpo docente, a fundadora do Voice expõe que, para fazer o projeto acontecer, conta com a ajuda de 36 professores voluntários, como a jornalista Nivia Correa, 32 anos.
Nivia alega que o posto de professora ainda lhe causa estranheza, já que sua única experiência em sala de aula foi com sua turma de ballet clássico. Ela relata que por ser parente de Amanda, idealizadora do projeto, acompanha de perto a trajetória da prima em trabalhos voluntários, e que sempre teve vontade de se envolver – encontrando no Voice, uma oportunidade de adentrar nesse universo.
Acho incrível como essa rede de mulheres é forte e determinada.
A voluntária diz não se considerar uma expert no idioma, mas que acredita que sua experiência de um ano em Londres lhe é suficiente para compartilhar o que sabe com outras mulheres. Em seu segundo semestre trabalhando no projeto, ela assegura aprender mais com as alunas do que ao contrário, e que além das aulas, faz o trabalho pelo vínculo de amizade desenvolvido com as mulheres participantes do curso.
“A cada domingo saio de lá com mais vontade e muito agradecida por tê-las conhecido. É um encontro de vários mundos, uma troca inexplicável. O Voice é uma iniciativa que traz à tona todas as falhas no sistema educacional, justamente por se fazer tão necessário. Mas acho incrível como essa rede de mulheres é forte e determinada", avalia.
"Na primeira aula que dei esse ano, usei muito do humor para fazê-las se sentirem à vontade, e contei com várias figuras da cultura pop, como a Beyoncé. Somos três professoras e nos dividimos para atendê-las da melhor maneira possível. Temos uma conexão surreal, creio que seja tão forte por sermos todas mulheres”, diz.
Projetos como o Voice trazem de volta alguns sonhos que deixamos para trás.
A estudante de psicologia Cléria Souza Pereira, 22 anos, afirma ter ficado sabendo do curso por meio da página de Paraisópolis nas redes sociais e que, desde que ingressou, tem adorado a experiência, por conta do ambiente acolhedor proporcionado pelos professores e pelo fácil aprendizado.
Leia também: Mulheres cientistas: saiba quem são as brasileiras que fazem a ciência acontecer
“Somos convidadas, o tempo inteiro, a exercitarmos a escuta, a fala. Os erros e acertos são naturais. Eu tenho muita dificuldade na conversação e na escuta, mas o contato com as outras alunas e com as professoras é ótimo, percebo que trabalham de uma forma mais horizontal, apesar de ainda haver a hierarquia em sala", avalia.
"Estou no Voice desde o ano passado, e para mim é um projeto essencial. Existem demandas que outras iniciativas não visam com tanto cuidado, quando se pensa no público feminino e periférico, sem contar que, hoje em dia, o inglês virou algo fundamental. Abre muitas portas, te permite novas experiências" diz a estudante de Paraisópolis . "Projetos como o Voice trazem de volta alguns sonhos que deixamos para trás”, conclui.