A fome e a miséria voltaram a ser uma realidade no Brasil. Desde o ano passado, cenas há muito tempo não vistas, como pessoas procurando o que comer no lixo, disputando restos em caminhões ou comprando ossos por quilo, como se fossem carne, entraram mais uma vez no cotidiano do brasileiro.
Para além da grave crise política e econômica em que o país se encontra, o ex-ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome José Graziano da Silva, criador do programa de combate à insegurança alimentar Fome Zero e diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), afirma que a falta de políticas dedicadas ao tema agrava a situação do povo brasileiro. Confira na entrevista exclusiva concedida ao iG .
Quais as diferenças e semelhanças da fome no Brasil no início dos anos 2000, quando o Fome Zero foi criado, e agora em 2022?
Começando pelas semelhanças, basicamente o problema é o mesmo: falta dinheiro para comprar alimentos. Isso decorre do baixo crescimento econômico, já que o país não cresce e não gera empregos, da alta concentração de renda e do pagamento de salários miseráveis, principalmente no setor informal. Ou seja, o modelo macroeconômico é o mesmo.
A razão da fome não é por sermos grandes exportadores de commodities alimentares – o fato de exportamos milho e soja para usar em ração animal não tem nada a ver com passar fome no Brasil. Não é uma questão de produção, mas da renda e de acesso, como já era no tempo em que Josué de Castro publicou o seu livro 'Geografia da Fome', em 1945. Se os salários pagos fossem compatíveis com o custo da cesta básica, não haveria problema. Josué de Castro dizia que se o trabalhador da zona canavieira do Nordeste, naquela época, pudesse ao menos chupar a cana que ele cortava, teria uma nutrição melhor. Nem isso era possível com os salários recebidos.
Agora, tem uma grande diferença: a insegurança alimentar no Brasil, em 2004, atingia cerca de 35% da população, é um número bem menor que os atuais 55%, revelado pela pesquisa da Rede PenSSAN (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional). Mas quando analisa entre os que têm insegurança alimentar, ou seja, quem não comem bem ou não comem o suficiente, a soma da insegurança alimentar grave e moderada é mais ou menos a mesma em 2020 e em 2004, com um valor de aproximadamente 22% – a FAO estima em 24%.
A grande diferença está na percentagem da população que sofre de insegurança alimentar leve, ou seja, aqueles que comem mal, que não comem produtos saudáveis e que tiveram que trocar os alimentos que consumiam, como carnes, por exemplo, por farinha, além de terem deixado de comer frutas, verduras e legumes. Em 2004, essa proporção atingia apenas 14% da população, e hoje, atinge 35% – um terço dos brasileiros comem mal e não comem o que deviam. Os dados da UNICEF mostram que, em maio de 2021, após um ano de pandemia, praticamente 50% dos domicílios com crianças ou adolescentes tinham consumido menos alimentos saudáveis, como frutas, verduras e outros produtos não industrializados.
Na média, 41% dos domicílios no Brasil reduziram o consumo de produtos saudáveis e passaram a consumir mais industrializados. Essa é a maior diferença, além do fato de que no Mapa da Fome que Josué de Castro desenhou no livro “Geografia da Fome”, a fome endêmica atingia o litoral do Nordeste, na Zona da Mata, e a Amazônia. Já os mapas atuais da Rede PenSSAN mostram que o Brasil inteiro vai se aproximando de uma cor vermelha, parece um mapa ensanguentado. É um indicativo da fome generalizada, que está espraiando por todo o país.
Dados da FAO apontam que 24% dos brasileiros vivem em estado de fome moderada. Deles, 8% atravessam situação de fome severa. A taxa foi de 2,5% antes da pandemia. Na sua avaliação, porque isso aconteceu?
Primeiro, uma correção. Houve um erro na publicação dessa informação em algumas colunas: o dado da FAO de 24% já é a soma de fome moderada e grave. É uma situação inédita, que foi revelada nessa entrevista do Toureiro, economista-chefe da FAO, que mostrou 8% de insegurança alimentar grave em 2020. Normalmente, a FAO não divulga esses dados individualmente por país, apenas por região. Ela evita fazer isso porque trabalha com médias trianuais, para evitar as grandes oscilações.
O fato é que os dados mais recentes que temos hoje no Brasil são respostas a perguntas individuais, que não podem ser comparadas com as de escala, que são perguntas múltiplas. Então, nos últimos dados disponíveis, temos os da UNICEF, que apontou que 17%, cerca 27 milhões de brasileiros maiores de 18 anos, declararam que alguém no domicílio deixou de comer porque não havia dinheiro para comprar mais alimentos. Além do último dado da pesquisa Datafolha, divulgada na véspera do Natal, mostrando que 15% dos brasileiros tinham deixado de comer em algum momento no período da pesquisa, e que 26% achavam que tinham comido menos do que deviam e do que precisavam.
Só pra ter uma ideia, os microdados da pesquisa do IBGE, a última disponível de 2017/2018, mostravam que 12% haviam comido menos e apenas 6% que tinham deixado de comer. Então, se contar o antes da pandemia e o agora, nós passamos de 6% que deixaram de comer para pelo menos 15% e de 12% que haviam comido menos do que deviam para 26% – mais que o dobro.
Essa é a trajetória da fome na pandemia: foi maior do que o dobro, mesmo com a vigência do Auxílio Emergencial de R$600, pago inicialmente em 2020, mostrando o caráter limitado que esses programas têm na erradicação da fome. Eles são bons para atenuar a fome em um momento de crise. Precisamos deles, não há dúvidas, mas também precisamos que os valores sejam maiores.
O sr. considera que o governo Bolsonaro cumpre alguma agenda contra a fome no Brasil? Há alguma política em curso para mitigar os efeitos dessa crise?
Não.
Qual a sua avaliação do desempenho do governo nesse quesito?
Minha avaliação é que o governo tem apenas uma agenda eleitoral e está desenvolvendo ações de emergência, sem nenhum plano para erradicar a fome, sem nenhum planejamento. É possível ver que, mesmo as mudanças feitas, como essa recente extinção do Bolsa Família para criar o Auxilio Brasil, é uma confusão total. Até agora, a gente não sabe, por exemplo, se realmente as famílias que estavam na fila do Bolsa Família foram ou não incluídas – há uma promessa de que eles vão ser pagos.
Mas veja a diferença: o governo começa com um programa de Auxílio Emergencial de R$600 para 68 milhões de pessoas em abril de 2020 e, depois, vai baixando tanto o número de pessoas que recebem como o valor. Por exemplo, em abril de 2021, um ano depois, o Auxílio Emergencial do Governo estava entre R$150 e R$375, dependendo do número de pessoas na família que recebia, beneficiando pouco mais de 39 milhões de pessoas. Agora, vem esse Auxílio Brasil, que é um número equivalente ao do Bolsa Família, no máximo 14 milhões de pessoas, em um valor de R$400. É apenas para desconstruir a marca do Bolsa Família, que estava associado ao PT (Partido dos Trabalhadores).
Leia Também
Cesta básica mais cara, botijão mais caro e altos índices de desemprego. Quais medidas deveriam ser adotadas no curto prazo para atenuar o cenário de insegurança alimentar no Brasil? E a médio/longo prazo?
Eu diria que a curto prazo, são as ações municipais dos prefeitos eleitos as mais importantes. Começando pela merenda escolar com compras da agricultura familiar. Muitos prefeitos se escudaram com a pandemia para não fazer isso. Eles recebem o dinheiro e tem uma lei que obriga a retirar ao menos 30% dos produtos da agricultura familiar. Não ter esses produtos significa tirar o leite fresco, os ovos, as frutas, verduras e legumes, e ficar apenas com os produtos padronizados, ultraprocessados e processados.
A merenda é fundamental para proteger as crianças nesse momento, porque elas levarão para toda a sua vida o impacto da fome que estão passando. Mas os municípios podem fazer muitas outras coisas: cozinhas comunitárias, restaurantes populares, hortas e apoiar a agricultura familiar. Ainda, é necessário reforçar o Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (Consea) municipal, para que ele se torne coordenador das ações contra a fome, articulando a sociedade civil, o setor privado e público. Não vamos sair dessa crise apenas com as ações governamentais, quem acaba com a fome é a sociedade. Nós precisamos de um articulador, que é o Consea, para fazer uma grande campanha a nível municipal, estadual e nacional contra a fome em 2022. Não dá para esperar o novo governo tomar posse em 2023.
A médio prazo, o caminho é restabelecer uma política de estado de segurança alimentar e nutricional. O que isso significa? Significa uma política que não dependa das ações de governo, tem que estar em lei regulamentada, como estava, e que o governo está descumprindo ao não dar uma dotação devida para as políticas de segurança alimentar e nutricional. Começaria pela recriação do Consea, restabelecer a política de valorização do salário mínimo – essa política é muito importante, o governo perdeu uma grande oportunidade agora de reajustar o salário mínimo acima da inflação. Nós, no começo de janeiro, já estamos perdendo, porque reajustou exatamente o que foi a inflação passada. Não foi previsto nada para o futuro em um momento de inflação alta.
Além disso, o valor do salário mínimo serve como um farol para os salários pagos no setor informal. Um outro ponto importante, a médio prazo, é acabar de novo com essa ideia de distribuição de cesta básica. Uma coisa é distribuir cesta básica quando tem uma inundação, como na Bahia, em que há a destruição de estruturas de comercialização e consumo. Mas, em geral, não é isso que ocorre. Você pode injetar dinheiro no local, através de transferência de renda, que é o princípio do Bolsa Família, para melhorar o consumo dos alimentos. Esse é o caminho que mostrou o programa 'Fome Zero', que deveria ser seguido.
A longo prazo é retomar o modelo de desenvolvimento inclusivo. O Brasil precisa crescer mais, gerar mais emprego e pagar melhores salários. Nessa semana que passou, li uma proposta do ex-ministro Guido Mantega, meu colega de ministério e de profissão, que me pareceu muito boa, dando prioridade à fome e o combate à miséria. São um conjunto de ações que ele lista, que são fundamentais para o Brasil sair do buraco onde nos metemos.
O senhor acredita que projetos como o Auxílio Brasil e o Auxílio Gás, na forma como estão estruturados, serão suficientes para tirar o Brasil desse quadro de miséria para famílias pobres?
Absolutamente não. Não são políticas emergenciais, que por definição são paliativas, que acabam com a fome. O que acaba com a fome são novos modelos de desenvolvimento econômico inclusivos, um modelo social democrata, que coloque os pobres no orçamento, como cansou de dizer o ex-presidente Lula. Os pobres não estão no orçamento, de modo que a miséria vai continuar. Leio todo dia projeções de que ela continuará em 2022 e 2023, sem que haja nenhuma indignação por isso, como se fosse algo natural.
A miséria, como escreveu o grande Victor Hugo no livro 'Os Miseráveis', é uma privação da condição humana, da dignidade humana. Nós não podemos tolerar a miséria em pleno século XXI. A fome é inaceitável, principalmente em um país como o Brasil.
O que vemos atualmente no Brasil também está acontecendo em outros países? De que forma?
Infelizmente, as informações disponíveis são muito poucas. Elas vão até 2020 – são as informações da FAO na sua publicação SOFI 2020/2021. A surpresa foi que houve um grande aumento da fome na América Latina. Embora a África continue detendo o maior número de pessoas famintas no mundo, é na América Latina onde o índice mais aumentou.
Segundo os dados da FAO, havia praticamente 60 milhões de pessoas com fome na América Latina em 2020, o maior número nos últimos 20 anos. Durante a pandemia, o número de pessoas com fome na América Latina aumentou em 14 milhões. Desde 2014, aumentou cerca de 26,5 milhões de pessoas.
A FAO atribui o aumento da fome na América Latina justamente a América do Sul, onde temos esse modelo agro-exportador – são 37 milhões a mais de pessoas em insegurança alimentar moderada ou grave e 18 milhões a mais em insegurança alimentar grave. Certamente, esse número da América do Sul está sendo influenciado pelo crescimento da fome no Brasil.
Qual é o caminho para que o país consiga reverter esse quadro?
Nós temos que procurar um novo modelo de desenvolvimento econômico inclusivo que faça o país crescer. Gerar renda e distribuir melhor essa renda, para ter empregos melhores e salários melhores. Nesse processo, o combate à miséria, à exclusão e à fome devem ter prioridade.
Por quanto tempo, na sua avaliação, as pessoas afetadas pela insegurança alimentar vão sofrer com as consequências da crise atual?
O Brasil já conseguiu erradicar a fome em menos de dez anos, ou seja, se contarmos o programa ‘Fome Zero’, anunciamos a saída do Mapa da Fome em 2014. Os dados de 2013 já mostravam o Brasil com menos de 5% da população com fome.
Se o combate à fome voltar a ser prioridade, podemos erradicar a fome em menos de dez anos, porque agora já sabemos o que precisa ser feito. Depende muito do que for feito pelos governos, sobretudo pelo novo governo que for eleito a partir de 2023.
Mas há situações que as pessoas afetadas pela fome vão sofrer e guardar pro resto da vida – é o caso das crianças, por exemplo. A pesquisa da UNICEF mostrou que metade das crianças não teve acesso à merenda enquanto as escolas estiveram fechadas. Essas crianças certamente vão levar para o resto da vida consequências da fome que passaram, já que a fome em crianças com menos de 5 anos de idade dificulta o desenvolvimento do cérebro e motor.