Segundo um estudo da Unicef, no Brasil, cerca de 713 mil meninas vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em seu domicílio e mais de 4 milhões não têm acesso a itens mínimos de cuidados menstruais nas escolas.
Um problema que é conhecido como pobreza menstrual e que é um dos principais causadores da evasão escolar. Na última segunda-feira (14), o governo de São Paulo anunciou o programa Dignidade Íntima que prevê um investimento de R$ 30 milhões em produtos de higiene menstrual para alunas da rede estadual.
Estima-se que, no país, uma em cada quatro meninas tem a vida escolar afetada por conta da falta de acesso a itens básicos de higiene como absorventes, água e sabão. Ao longo do ano, elas perdem cerca de 45 dias letivos.
Nicole Campos é mestre em Ciências Sociais e trabalha como gerente técnica de programas da Plan International Brasil, organização que desde 2010 desenvolve questões de gênero em projetos pelo país.
Entre eles, o Programa Menstrual de Saúde que faz parte do projeto Água, Saúde e Vida que além de revitalizar sistemas de água em comunidades do interior do Maranhão, distribui absorventes e promove oficinas temáticas com as famílias.
Em entrevista ao iG, Nicole explicou como a educação sexual é fundamental no combate às desigualdades e à pobreza menstrual.
O governador João Doria, disse que “As professoras e diretoras sabem quem precisa ou não precisa de absorventes.” Você acha que, devido o tabu, as professoras diretoras são realmente a melhores pessoas para distribuir os absorventes? Não seria melhor que eles fossem disponibilizados amplamente como acontece com preservativos?
Exatamente. Toda vez que a gente pauta o tema da saúde menstrual e de distribuição, eu gosto sempre de traçar essa assimetria. O preservativo é distribuído amplamente, mas no caso da menstruação não há escolha, as mulheres simplesmente menstruam. É algo que acontece com o nosso corpo, um processo natural e que é uma necessidade básica. Então, absorventes deveriam estar acessíveis para todas não só para algumas.
É uma questão muito delicada “escolher” quem vai receber ou não, principalmente porque numa escola pública as meninas estão mais ou menos no mesmo contexto social. E, de fato, a gente vai ter que pensar em como não expor as meninas, e em uma maneira que não gere conflito.
Quando falamos sore distribuição gratuita e políticas sociais, as pessoas invertem as coisas. Pressupõe que vai haver fraude caso, por exemplo, o absorvente fique disponível para todas. “Porque uma vai acabar levando para sua irmã, para a sua mãe”. Ao invés de se concentrar em uma educação para o uso consciente todos acabam sendo penalizados com essa ideia de que alguém não vai ser justo.
É muito cruel pensar que a gente deixa de atender ou penaliza quem realmente precisa por conta de um pensamento que pode ser superado por meio de educação e sensibilização. Esse é um trabalho que a própria escola tem que realizar, desenvolvendo mecanismos e metodologias para tratar esse tema com adolescentes e crianças.
Não é um problema fácil de ser resolvido, mas eu parto do princípio de que os absorventes deveriam ser disponibilizados para todas, assim como os preservativos.
A falta de acesso à informação também pode ser considerada parte da pobreza menstrual, por quê?
Nós costumamos dizer que a pobreza menstrual se baseia em um tripé. O primeiro aspecto é financeiro e seria a falta de recursos econômicos para ter acesso a itens que garantam a higiene menstrual e que permitam que quem menstrua passe por esse período com dignidade sem trazer nenhum risco à sua saúde.
O segundo aspecto tem a ver com infraestrutura e saneamento básico. Faz parte da pobreza menstrual não ter uma infraestrutura adequada como um banheiro em privacidade, com água e sabão para fazer a higiene.
E o terceiro aspecto é a informação, a educação sobre o tema. É muito importante que as meninas saibam sobre o seu ciclo. Não só as meninas, mas os meninos e a sociedade em geral. Se você não educa a população para os temas de menstruação, saúde sexual e saúde reprodutiva, a menstruação continua sendo um tema tabu que não é pautado em políticas públicas.
Com um projeto como o Dignidade Íntima, do Governo de SP, você consegue resolver parte do problema da pobreza menstrual, porque você está distribuindo absorventes. Mas quando falamos de informação, de educação e saúde menstrual, nos perguntamos: esse é o melhor método para aquela menina? Será que ela se conhece o suficiente para saber que esse é o produto adequado para ela?
Ela tem o direito de saber que existem outros produtos e o direito de ter acesso àquele produto que ela reconhece como sendo o melhor para ela. Além de uma série de questões que você só consegue pensar e refletir se você tem acesso à educação sobre o tema.
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Qual a importância da educação sexual nas escolas públicas para o combate à pobreza menstrual?
Primeiro, a visão que as pessoas têm sobre educação sexual é muito deturpada. As pessoas não conhecem o que é. Vivemos hoje num contexto de fake news e de informações rápidas. As pessoas consomem rapidamente as informações e pensam que sabem de tudo. Elas não estudam o assunto para poder opinar.
Nesse contexto surgem boatos com o kit gay e a mamadeira de piroca. Se as pessoas vissem como é o manual de orientações sobre educação sexual da UNESCO, um mundo iria se abrir na vida delas.
A recomendação do manual é a partir dos seis anos. Claro que você não vai falar de sexo com uma criança de seis anos, porque a educação sexual integral trabalha e desenvolve habilidades para a vida. Estamos falando de comportamentos, de atitudes, de práticas e de conhecimento como, por exemplo, saber o que é consentimento, ter empatia e respeitar os direitos e os limites dos outros.
A questão da saúde menstrual também é trabalhada na educação sexual e quando se fala sobre menstruação você tem que falar sobre ovário, útero, se um óvulo é fecundado ou não. Está tudo interligado.
A educação sexual promove autoproteção. Inclusive, estudos mundiais apontam que, do contrário do que muitos pensam, ela retarda o início da vida sexual. Porque aquele adolescente que tem acesso à informação vai ter mais consciência dos riscos envolvidos em uma relação sexual.
Quem não conhece, não sabe a dimensão e a responsabilidade que é você iniciar a sua vida sexual. Quem conhece os riscos, sabe que pode ter contato com uma DST, que pode ser infectado por HIV, que pode engravidar. Sabe que existem métodos contraceptivos e quais e quando usá-los.
Quem não tem o conhecimento, trabalha com mito. Com informações que não são apuradas. E assim problemas como a violência sexual e a gravidez precoce se perpetuam.
A menstruação é muito colocada como um marco que “define o fim da infância” de uma menina. É comum se dizer que ela “virou mocinha” quando ocorre a menarca (primeira menstruação). Isso impacta na visão que as pessoas têm sobre a menstruação e sobre as meninas?
Esse é um problema gigantesco que vem com desconhecimento. Por que se diz que a menina virou mulher quando ela menstruou? Porque ela já pode engravidar. De fato ela pode engravidar, mas ela ainda está no processo de maturação sexual. Tanto que uma gravidez até os dezenove anos é considerada uma gravidez de risco que pode trazer inúmeros problemas que têm que serem tratados de uma maneira diferente.
É uma questão muito complexa dizer que quando uma menina menstrua, ela vira mulher. Sim, ela tem capacidade reprodutiva, mas não deixa de ter os seus direitos como menina estabelecidos no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). De acordo com a Declaração Universal dos Direitos da Criança, você é criança até completar dezoito anos.
Essa visão social é muito forte e gera problemas que vão além de não tratar uma menina como a criança que ela é. As meninas passam a ser mais controladas e são obrigadas a amadurecer mais cedo, deixam de brincar, passam a ter mais responsabilidades domésticas e podem casar cedo.
É uma forma de perpetuar um sistema que controla a sexualidade da mulher, porque ter esse controle é importante para a manutenção do sistema patriarcal e do machismo.
A pandemia teve muito impacto no aumento da pobreza menstrual e na atuação dos grupos que ajudam a combatê-la?
Teve sim, porque a pandemia também trouxe uma crise econômica. As famílias reduziram a sua renda e absorvente não é considerado um item básico. As pessoas tiveram que garantir mais comida do que outras coisas e isso com certeza impactou muitas meninas. Aqui na Plan uma das ações que realizamos foi a distribuição de absorventes junto dos itens de higiene da cesta básica.
Outra coisa que gerou impacto foi a falta de aulas de biologia. Muitas meninas deixaram de ir à escola e não tiveram condições de ter uma aula on-line. Mesmo que não seja dentro de uma sistemática de educação sexual integral, as crianças têm contato com esse tipo de informação quando estão estudando o sistema reprodutivo em biologia.
Além disso, a diminuição do atendimento nos centros de saúde, centros comunitários e unidades básicas de saúde também gerou impacto negativo na pobreza menstrual, porque são lugares primordiais para buscar prevenção, informação.
Qual a importância de educação menstrual para as pessoas que não menstruam?
Geralmente a menstruação está associada ao mundo das mulheres e vivemos em uma sociedade com muita desigualdade de gênero. Para que a gente possa superar essas desigualdades, precisamos falar sobre temas que afetam a vida das mulheres. E com isso não quero dizer que só mulheres cisgênero menstruam, também temos homens trans, pessoas não binárias e de outras identidades que também menstruam.
Para superar as desigualdades, precisamos falar sobre o assunto inclusive com as pessoas que não menstruam. Todas as pessoas têm que ser aliadas para que uma transformação social ocorra.
É muito necessário que se amplie o debate. A partir do momento em que o ciclo menstrual é trabalhado com os meninos ampliamos o conhecimento dele sobre o sistema reprodutivo. E aí conseguimos levar informação sobre métodos para evitar uma gravidez, porque sabemos que a responsabilidade sobre a gravidez não é só das meninas e das mulheres, mas também dos homens.