Israel não está localizado na Europa, mas mesmo assim participa todos os anos, há décadas, do festival de música Eurovision, do qual saiu vitorioso quatro vezes (embora pouco conhecido no Brasil, foi assistido por 163 milhões de espectadores no ano passado). Ao longo das últimas semanas, o público israelense está acompanhando os episódios do programa de calouros A Próxima Estrela (HaKochav Habá), cujo finalista será o representante do país na próxima edição do festival, que acontecerá em maio, na Suíça.
No ano passado, as gravações do HaKochav Habá se iniciaram poucas semanas depois da invasão do Hamas ao sul de Israel, e provocou um mar de lágrimas: tanto os candidatos quanto os juízes estavam não apenas com a emoção à flor da pele como, também, fizeram de tudo para que cada canção servisse como homenagem às vítimas do massacre e também aos soldados em serviço. Acabou sendo também palco de uma história dramática – o soldado reservista Shaul Greenclick foi morto em Gaza pouco depois de ser aprovado em sua primeira apresentação.
Quem então poderia imaginar que, contra todas as previsões possíveis, também a edição deste ano seria gravada em meio à guerra? Como não podia deixar de ser, a maioria dos participantes têm histórias marcantes relacionadas ao conflito. A diferença dos calouros do ano passado é que, dessa vez, estamos vendo israelenses que participaram diretamente do massacre e, apoiando-se na arte, superaram minimamente o trauma vivido (muitos, muitos mesmo, ainda estão lutando para se recuperar do que viveram).
Daniel Weiss é sobrevivente do Kibbutz Beeri, uma das comunidades agrícolas mais duramente atacadas pelo Hamas – dezenas de terroristas permaneceram na área por quase dois dias até que fossem totalmente eliminados pelo exército. De seus cerca de 1,2 mil habitantes, mais de 100 foram brutalmente assassinados e 32, levados como reféns para Gaza. Toda a família de Daniel vivia ali. Ele e seus dois irmãos sobreviveram, seu pai foi assassinado naquele dia e sua mãe, sequestrada pelo Hamas, foi morta mais tarde, na Faixa de Gaza. Na sua canção, ele fala sobre esperança e, ao final, agradece aos pais. Quem compreende o contexto e a letra da música não consegue conter as lágrimas.
Já Yuval Rafael é sobrevivente do Festival Nova, evento musical que contava com cerca de 5 mil participantes quando foi invadido pelo Hamas na manhã do dia 7 de outubro. Ali, 364 pessoas foram assassinadas e 40 levadas como reféns. Yuval fugiu da perseguição dos terroristas e escondeu-se em um dos abrigos antiaéreos próximos, junto com outras 39 pessoas – Yuval foi uma das 11 sobreviventes que se salvaram ao permanecer imóveis sob dezenas de corpos por mais de 6 horas. Na canção que escolheu, Yuval clama “eu me sinto estúpida enquanto rezo, porque ninguém está me ouvindo”.
A música tem o incrível expressar emoções que dificilmente são expostas por palavras e, pelo menos para os israelenses, é impossível conter a emoção toda vez que entramos em contato com a dor destes sobreviventes. Resta-nos aplaudi-los, ao vê-los transformar em arte um trauma tão profundo.
E, como dizemos aqui em Israel, que tenhamos o mérito de merecer a sua coragem.
** Miriam Sanger é jornalista, iniciou sua carreira na Folha de S.Paulo e vive em Israel desde 2012. É autora e editora de livros, além de tradutora e intérprete. Mostrar Israel como ele é – plural, democrático, idiossincrático e inspirador – é seu desafio desde 2012, quando adotou o país como seu.