Miriam Sanger

“Ainda não consigo lidar com o que aconteceu”

O Festival Nova, violentamente atacado na invasão ao sul de Israel em 7 de outubro, foi a primeira rave da vida de Avigail Shashoua

Cerimônia no memorial Nova, perto do Kibutz Reim, no sul de Israel, no primeiro aniversário dos ataques, 7 de outubro de 2024
Foto: John Wessels
Cerimônia no memorial Nova, perto do Kibutz Reim, no sul de Israel, no primeiro aniversário dos ataques, 7 de outubro de 2024


O Festival Nova, violentamente atacado na invasão ao sul de Israel em  7 de outubro, foi a primeira rave da vida de Avigail Shashoua, 24. Como lembrança, ela traz consigo noites insones, flashbacks e a percepção de que Israel pode ser um lugar perigoso.

“No dia 6 de outubro à noite, um amigo meu, um dos produtores do Festival Nova, mandou para mim um convite gratuito para o evento. Adoro música e adoro dançar, mas nunca havia participado de uma rave. Como outros amigos meus também planejavam ir – uma turma grande da qual faço parte – , decidi me juntar a eles.

Avigail Shashoua vive as consequências após sobreviver ao ataque de membros do Hamas ao Festival Nova, em 7 de outubro de 2023
Foto: Arquivo pessoal
Avigail Shashoua vive as consequências após sobreviver ao ataque de membros do Hamas ao Festival Nova, em 7 de outubro de 2023



“Vivo em Manof, uma pequena comunidade no norte de Israel, e nosso ponto de encontro foi na casa de um deles, em Emek Hefer, mais no centro do país. Combinamos de sair às 3 da manhã em direção ao sul. Éramos 11 amigos divididos em três carros. Chegamos ao estacionamento do festival no horário que planejamos, às 5h30, para assistir ao nascer do sol.

“Primeiro, começamos a tirar nossas coisas do carro. Como é um festival de dois dias, os participantes montam barracas com luminárias bonitas e estendem colchões e grandes esteiras no chão. Começamos a organizar o nosso canto, mas eu tinha pressa: queria ver logo como era o festival. Rapidamente entramos na área da festa em si, lotada de pessoas.” 

Assim começa o relato de Avigail, sobrevivente do Festival Nova, um evento que reuniu 5 mil participantes em Re´im, a 5 quilômetros da fronteira com a Faixa de Gaza, em que 40 pessoas foram sequestradas, 364 foram mortas e centenas ficaram feridas. 

Ela viveu, até o dia  7 de outubro de 2023, a trajetória típica de uma jovem israelense. Finalizou o segundo grau, prestou serviço militar obrigatório por dois anos em uma divisão de combate que atua na comunicação entre as observadoras de fronteira e os soldados em campo. Terminou com o ranking de capitã. A partir daí, começou a se preparar para prestar o exame correspondente ao vestibular no Brasil, com o objetivo de estudar Arquitetura no Technion – Instituto de Tecnologia de Israel, uma das universidades mais conceituadas no país e no mundo –, o mesmo local onde se formou seu pai, brasileiro do Rio de Janeiro.

Esse plano mantém-se o mesmo – mas Avigail mudou. Essa é a sua história.

Em que horário você entrou na área da festa em si? 

“Era bem perto das 6h30, exatamente quando os ataques com mísseis começaram. Assim que entramos, a música parou. O DJ começou a gritar “alerta vermelho, o evento terminou, encontrem proteção”. Eu e meus amigos crescemos em Israel, servimos no Exército, sabemos o que são mísseis, sabemos o que é Gaza. Achamos que logo o ataque seria interrompido e voltaríamos a dançar. Enquanto víamos os mísseis no ar, policiais se aproximaram e nos mandaram entrar no carro e voltar para casa, sem explicar o porquê – hoje sei que nem eles sabiam a dimensão do evento.

Vídeo filmado por Avigail no momento em que decidem viajar com o carro pelos campos agrícolas para escapar dos terroristas


O que vocês fizeram então?

Havíamos ficado cerca de meia hora agachados sob uma árvore. Depois disso, começamos a voltar para a área das barracas para embrulhar nossas coisas. Nessa hora, recebi o telefonema de um amigo contando que outro havia sido atingido por um tiro na perna por um terrorista. Entendemos que era um evento diferente, não apenas mais um bombardeio. Entramos no carro e começamos a sair do estacionamento. Mas havia ali cerca de 5 mil pessoas e todos estavam evacuando a área ao mesmo tempo. De repente, estávamos em um tremendo congestionamento e ouvimos “booms” diferentes – por causa do serviço militar e da vida em Israel, sabemos diferenciar bem o som de armas do de mísseis. E eram armas. Entendemos que os terroristas estavam perto de nós. Nessa hora, eu estava com mais uma amiga e dois amigos. Os outros sete se dispersaram em diferentes direções. Até que alguém gritou para abandonarmos os carros e corrermos a pé para os campos agrícolas vizinhos. Muitos fizeram isso, nós não.

Foto: Arquivo pessoal
Foto de Avigail dos mísseis lançados pelo Hamas; ela foi tirada quando ela ainda estava no Festival Nova





















O que você via ao seu redor?

Pânico, centenas de pessoas correndo e gritando. Vimos que muitas delas precisavam de ajuda. Tiramos tudo o que havia no carro – geladeira portátil, barraca, compras de supermercado etc. Em um veículo para cinco pessoas, entramos 14, sentadas umas sobre as outras. Meus amigos abriram um mapa e começaram a discutir para onde deveríamos seguir – decidimos ir em direção a uma pequena cidade chamada Urim. No rádio, ouvimos que terroristas haviam invadido Israel e pensamos: talvez sejam 4, 6… talvez 10? Quantos poderiam ser? Não estávamos preparados para essa ideia. Nessa hora, ainda estávamos calmos.

Filme de Avigail que mostra o momento em que percebem o som de tiros e decidem prosseguir viagem. No fundo, os amigos comentam que estão vendo pessoas sangrando, mas acreditam tratar-se apenas do resultado de quedas causadas pelo pânico dos participantes do festival


Você se comunicou com sua família nesse momento?

Sim, pelo WhatsApp. Mandei para o grupo de nossa família filmes com os mísseis, escrevi que estávamos sob ataque no sul e que eu os manteria atualizados. Depois que vimos várias pessoas ensanguentadas e também terroristas, escrevi de novo e avisei que estávamos saindo da estrada. Viajamos pelos campos agrícolas [o sul de Israel é considerado o celeiro do país] e, quando chegamos no cruzamento para Urim, um policial nos parou e nos orientou a nos protegermos em um abrigo antiaéreo. 

Foto: Reprodução
Localização de Gaza e Urim


Eram 8h30. Mas, ao chegarmos até ele, havia ali muita gente, inclusive pessoas feridas, e não havia espaço para nós. Ao lado, há um posto de gasolina com um restaurante e, ao lado dele, terroristas e policiais se confrontavam. Depois de bater muito na porta, as pessoas que já estavam escondidas na cozinha nos deixaram entrar. Pouco tempo depois, um soldado entrou e, assim que retiramos sua veste de proteção, vimos que seus órgãos internos estavam expostos. Ele morreu em seguida. Por volta das 12h30, depois de horas sem ir ao banheiro, decidi procurar por um. Fui me arrastando pelo chão, como nos exercícios que fazemos no Exército, e dei de cara com um terrorista morto. Mas consegui chegar ao banheiro e depois retornar para a cozinha. Um policial então apareceu para nos dizer quem “quiser pode ir, quem quiser pode ficar”. Que tipo de frase é essa?, pensei. Um policial normalmente não dá opções e isso mostra o tamanho do caos que estávamos todos vivendo. Decidimos viajar para casa, ainda sem ideia do que estava de fato acontecendo. 

E como foi o caminho de volta?

A estrada estava vazia nas duas direções e havia muitos buracos de mísseis no asfalto. Chegamos até a estrada 6 [via expressa que corta o país de norte a sul] sem ver nenhum terrorista. Não havia ninguém, apenas silêncio. Ao longo do caminho, começamos a receber telefonemas de amigos. Dois ficaram na área do festival e foram mortos. Outros dois tentaram se esconder em um abrigo antiaéreo na entrada do kibbutz Beeri [uma das comunidades agrícolas que foi invadida por centenas de terroristas] e também foram assassinados. Outro amigo, que havia sido atingido na perna, conseguiu fugir com outras pessoas. Mesmo nessa hora, nem sequer minha família conseguia entender a dimensão do atentado. Em uma das mensagens que trocamos no grupo, minha mãe apenas escreveu: “Gali, volte pra casa”. E eu só pensei: “Vai levar um tempinho”.

Você foi direto para casa?

Não, fomos para o lugar onde havia sido nosso ponto de encontro antes da festa, em Emek Hefer. Quando eu ainda estava na cozinha do restaurante, havia escrito para minha capitã da reserva, pois vi que havia uma incessante troca de mensagens no grupo de WhatsApp de nossa divisão. Entendi que precisariam de mim. Eu a avisei que estaria à disposição. 

[Muitos israelenses ficam à disposição do Exército como reservistas após o fim do serviço militar.]

Assim que cheguei lá, minha capitã me escreveu pedindo que eu fosse imediatamente para a fronteira norte de Israel. Obviamente, não tinha nada comigo – eu estava preparada para uma festa… Meus pais prepararam a minha mala e meu pai veio me buscar para me levar diretamente à base onde prestei meu serviço militar, em Ramat Hagolan, na fronteira com o Líbano. 

Sua capitã sabia que você havia estado na festa?

Não. Durante uma semana, não comentei nada. Quando souberam, me mandaram para casa, mas depois fui recrutada novamente. Só fui liberada no meio de setembro.

Por que você não contou?

Todo mundo chegou com uma história difícil para contar. Há aqueles que estiveram no festival, há quem tenha sido convocado para os combates no sul etc. Na verdade, até então eu não havia entendido que eu sobrevivi ao massacre do Nova. Também não compreendia que naquela manhã, caso optássemos por seguir para uma direção e não para outra, eu também teria sido assassinada. 

Quando você soube a respeito do destino dos amigos que foram assassinados pelo Hamas?

Somente depois de 11 dias: durante as primeiras semanas, centenas de pessoas foram consideradas desaparecidas.

[O número de mortos – 1,2 mil – e feridos – mais de 5,5 mil – em apenas um dia congestionou todos os sistemas de Israel: hospitais, clínicas, centros de resgate etc. Muitos foram mortos com granadas ou tiveram seus corpos esquartejados, o que dificultou sua identificação. Além disso, o Hamas nunca divulgou uma lista com os nomes dos sequestrados.]

A princípio, achei que meus amigos haviam sido sequestrados. No ataque, terroristas e civis palestinos aproveitaram para roubar tudo o que encontravam pela frente – o telefone de uma de minhas amigas foi localizado em Gaza tempos depois. 

Como você lidou com a notícia?

Usei o Exército para me desligar emocionalmente. Ainda não consegui lidar com o que aconteceu. Perdi quatro amigos que estavam comigo – como é possível algo assim acontecer? Não fui ao enterro deles e até hoje não consigo lidar com esse assunto. Sou muito fechada e é assim que lido com isso: me desligo.

Como foi sua atuação todos esses meses no norte de Israel?

Minha base militar foi muito atingida. Todos os dias fomos atacados pelo Hezbollah com todos os tipos de bombas e mísseis. Depois do que passei no festival, tornou-se muito difícil para mim entrar em abrigos antiaéreos. O evento mais crítico aconteceu em julho: um dos capitães da reserva em minha base tentou se proteger de mísseis lançados do Líbano dentro de um tanque, mas não fechou a escotilha superior – e o míssil entrou ali em cheio. Quando o ataque terminou, fui com um médico procurá-lo, já que ele não atendia ao telefone, e o encontramos morto no tanque. Tive que ajudar na retirada de partes do corpo para levar para uma ambulância. A base era minha segunda casa, ali passei todo o meu serviço militar. 

Como você foi psicologicamente impactada pelo que passou? 

Quase não durmo. Tenho pesadelos e flashbacks, apesar de ter apagado muitas cenas da minha memória. Tive que sentar com uma amiga para tentar lembrar de tudo o que vi: o soldado que morreu na minha frente, as crianças feridas. Também enfrento problemas de concentração, mas, por outro lado, me tornei superatenta a tudo que acontece ao meu redor. Não entro em locais dos quais será difícil sair. Também perdi o contato com os amigos com quem fui ao festival. Acho que isso acontece porque cada um de nós está lidando com o evento de forma diferente e não conseguimos encontrar um ponto em comum. De qualquer forma, acredito que isso seja um processo que um dia vai passar.

Algo mudou a respeito do que você pensa sobre Israel?

Entendi que vivo em um país perigoso e que, em um momento de emergência, só eu posso defender a mim mesma. Sem contar com polícia, com Exército – sem confiar em ninguém. Mas não vou sair daqui. Sei que há períodos assim e acredito que isso nos fortalecerá como povo.

** Miriam Sanger é jornalista, iniciou sua carreira na Folha de S.Paulo e vive em Israel desde 2012. É autora e editora de livros, além de tradutora e intérprete. Mostrar Israel como ele é – plural, democrático, idiossincrático e inspirador – é seu desafio desde 2012, quando adotou o país como seu.