O judaísmo
segue o calendário lunar e, por essa razão, nossas celebrações nacionais – salvo raras exceções – não têm uma data definida no calendário gregoriano. Além disso, os judeus estão um pouco, digamos, avançados no tempo e, da noite do dia 2 de outubro à noite do dia 4, celebraremos a chegada do ano 5785.
Em hebraico, esta festividade é chamada de Rosh Hashaná (cabeça do ano).
Esta é normalmente uma época abençoada e bem-vinda em Israel, não apenas pelo fim do verão inclementetípico do Oriente Médio e a aproximação da estação do outono (a qual amo mais do que qualquer outra). É também um período em que as pessoas deixam vir à tona o cansaço dos últimos 12 meses e preparam-se para se encher de energia para viver os próximos 12.
Isso vale para qualquer ano – para esse, não. Perdidos entre a alegria dessa festa tão familiar e luminosa, a dor desta guerra e a interminável espera pela volta dos 101 reféns que ainda estão aprisionados em Gaza, temos um gosto agridoce na boca. Não sabemos se nos sentimos felizes ou tristes, aliviados ou desgastados (ou tudo junto). Nem entendemos como podemos estar preparados para os próximos 360 e poucos dias – dependendo se você segue o calendário solar ou lunar.
Quatro festividades em um mês
Na verdade, este período traz uma sucessão de festividades judaicas. Começamos pelo ano-novo com dois dias de muita comilança, rezas e convívio familiar. Quem tem coragem de sair de Israel em uma viagem ao exterior e aproveitar o feriado escolar para circular pelo mundo, corre o enorme risco de ter seu voo de volta cancelado, como se tornou praxe desde o início da guerra devido à hesitação das companhias aéreas toda vez que surge uma nova ameaça de ataque de nossos vizinhos. Para os mais religiosos, é o momento de arrepender-se dos maus atos praticados no ano anterior e buscar ganhar pontos com ações virtuosas.
Dez dias depois, chega a vez de Yom Kipur , conhecido como o Dia do Perdão, em que durante o jejum de 25 horas e um dia dedicado à introspecção e rezas, os judeus pedem a Deus que confirme a inscrição de seus nomes no Livro da Vida no próximo ano – uma decisão que Ele há de ter tomado em nosso favor em Rosh Hashaná. Ou assim esperamos.
Daí seguimos para Sucot, a Festa das Cabanas, que lembra as habitações dos judeus durante seus 40 anos de êxodo do Egito até a chegada à Terra Prometida, conforme descrito no Antigo Testamento. Versões modernas das tais cabanas são encontradas em todos os lugares públicos de Israel e também nos jardins das casas e varandas dos apartamentos em todo o país, pois faz parte da celebração realizar, durante uma semana inteira, as refeições sob ela (alguns até mesmo passam seus dias e noites ali). A simbologia é linda e digna de ser explicada: nessa festa, os judeus lembram que sua passagem pela vida é temporária e frágil, sujeita a chuvas e trovoadas. Literalmente, já que as chuvas chegam com o outono.
As escolas e jardins de infância, as empresas e departamentos públicos, tudo funciona em um ritmo lentíssimo durante esse mês inteiro de festas. Isso faz com que também as pessoas desacelerem seu ritmo de vida. De novo, isso vale para qualquer ano – nesse, não.
Milhares de famílias terão um ou mais lugares vazios à mesa nesse ano e enfrentarão a falta daqueles que foram mortos, feridos gravemente ou sequestrados na invasão do Hamas no dia 7 de outubro. Só posso imaginar que uma coisa é viver cotidianamente com a consciência da falta, a outra é conviver com sua manifestação física.
Uma festa sem alegria
Creio que o pior de tudo será enfrentarmos a festa que acontece no último dia Sucot, Simchat Torá – que se traduz por “alegria da Torá”. A celebração fecha o mês mais festivo do judaísmo e que marcará um ano (judaico) do pior massacre já acontecido no Estado de Israel. Essa foi a data escolhida a dedo pelo Hamas em 2023 para a invasão ao sul do país.
Neste ano, a celebração cairá no dia 23 de outubro (lembra-se do que comentei sobre o calendário lunar?)
Ainda não está claro de que forma essa data será lembrada em eventos públicos que estão sendo preparados pelo governo e pelas prefeituras, escolas, sinagogas etc. A pouco mais de um mês dela, já sentimos o peso de sua aproximação.
Até lá, bem, até lá continuaremos assim, com os sentimentos polarizados, convivendo ao mesmo tempo com o alívio pela aproximação do fim desse ano trágico e a consternação que nos envolve. E, como sempre, manteremo-nos esperançosos de que a guerra chegará ao fim, os nossos retornarão às suas famílias, e caminharemos juntos com nossos vizinhos em direção à paz definitiva.
Não custa nada sonhar.
** Miriam Sanger é jornalista, iniciou sua carreira na Folha de S.Paulo e vive em Israel desde 2012. É autora e editora de livros, além de tradutora e intérprete. Mostrar Israel como ele é – plural, democrático, idiossincrático e inspirador – é seu desafio desde 2012, quando adotou o país como seu.