Quem acompanhou o noticiário da semana passada pode imaginar que a raiz de todos os problemas que travam a execução dos projetos de interesse do governo está fincada no interior do Congresso Nacional. Mais precisamente no gabinete do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Num jogo já conhecido, e que parece se tornar mais pesado a cada dia, Lira é apontado como o grande articulador do esquemade escambo que tomou conta da política do Brasil. Por meio dele, os parlamentares condicionam a aprovação de toda e qualquer matéria de interesse do Executivo à liberação de verbas e de acesso a cargos públicos.
Nada sai de graça em Brasília. Em troca dos cargos e das verbas, parlamentares aderem ao governo com a maior facilidade — ainda que seus eleitores lhes tenham dado votos na esperança de que fizessem oposição. E se, no passado, os políticos penhoravam seu apoio à espera do cumprimento de uma promessa no futuro, hoje exigem pagamento adiantado. O escambo político antigamente se chamava “toma lá, dá cá”. Agora, passou a se chamar “dá cá, toma lá”.
A impressão que se tem é a de que o governo, que oferece vantagens na tentativa de conquistar uma maioria parlamentar que não conseguiu construir nas urnas, exagerou na dose e acabou se tornando refém da estratégia de facilitar a vida de quem estiver de seu lado. Ninguém parece se importar com o que está sendo posto em votação. Se os recursos prometidos são liberados e depositados, qualquer matéria é aprovada com facilidade. Do contrário, a turma ameaça com uma rebelião que negará ao governo os votos que ele necessita para aprovar os programas de seu interesse. Simples assim.
INGRATIDÃO — Para conter o que parecia ser o início de uma rebelião parlamentar, o Ministério da Saúde (que, desde 2019, concentra 50% das emendas parlamentares) liberou a toque de caixa o pagamento de R$ 4,8 bilhões que estavam retidos, à espera de folga no orçamento. Pouco mais da metade dos recursos, R$ 2,5 bilhões, caiu na conta dos beneficiados na quarta-feira passada.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, claro, não está satisfeito com a situação. Tanto assim que, na sexta-feira passada, convocou os ministros responsáveis pela articulação política e os líderes do governo no Congresso para dar um puxão de orelhas generalizado. Sobrou até para o Partido dos Trabalhadores, que desperta a mágoa do presidente por não agir com firmeza para defender os interesses do governo, especialmente na Câmara.
A questão da desarticulação política do governo é evidente e, no final das contas, parece causada pela chantagem de gente que foi eleita para fazer oposição, mas que, agora, pulou para dentro do barco do governo petista. Quem reparar direito, porém, notará que não é bem assim. No interior da própria máquina pública existem companheiros que também devem gratidão a Lula, mas parecem jogar contra projetos que, se andassem depressa, ajudariam o Planalto a estimular a economia e, em consequência, melhorar sua popularidade cadente.
Veja, por exemplo, o que vem acontecendo na área ambiental. Não é segredo que os técnicos e funcionários do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) receberam a vitória de Lula sobre Jair Bolsonaro nas eleições de 2022 como aquilo representasse o fim de quatro anos de calvário. E comemoram o resultado das urnas como se estivessem recuperando a dignidade profissional perdida ao longo do governo anterior. Pois é...
Imaginava-se que, sob uma administração que se diz sensível à causa ambiental e sendo chefiados pela ministra Marina Silva, que encarna a imagem viva da causa que eles defendem, os servidores públicos responsáveis pela execução das políticas de suporte ao desenvolvimento sustentável fossem os primeiros ase esforçar para que estegoverno dê certo. Só que não!
Alegando uma suposta defasagem salarial e querendo alterar as condições de trabalho com as quais concordaram quando prestaram os concursos públicos que lhes garantiram seus empregos estáveis, os funcionários dos órgãos ambientais resolveram em janeiro deste ano suspender o trabalho de campo. Oficialmente, eles não estão em greve. Comparecem normalmente ao local trabalho e batem o ponto. Mas se recusam a ir a campo para fazer o serviço que são pagos com dinheiro do povo para realizar. Deixaram de fazer vistorias, de fiscalizar instalações e derealizar audiências públicas — que são etapas indispensáveis para a emissão das licenças obrigatórias para projetos com impactos ambientais.
De acordo com uma reportagem publicada na semana passada pelo portal Poder360, com base em dados fornecidos pelos próprios sindicalistas que lideram essa operação, que pode ser chamada de “me engana que eu gosto”, apenas duas licenças ambientais foram emitidas este ano. Neste momento estão parados, ainda conforme informações passadas pelos próprios sindicalistas, a liberação de uma série de laudos.
Eles dizem respeito a quatro novas termelétricas a gás, três parques de geração de energia eólica, três gasodutos, dez linhas de transmissão indispensáveis para evitar apagões e promover a segurança energética no país e dez pedidos relacionados à pesquisa, prospecção ou exploração de petróleo. Nenhuma decisão em relação a esses projetos pode ser tomada enquanto o IBAMA não emitir a licença que autorize seu funcionamento. A paralisação causa o atraso de bilhões e bilhões em novos investimentos e o adiamento da geração de milhares e milhares de empregos em todas as regiões do país.
FRANJA NORTE — A atitude dos funcionários do IBAMA e do ICMBio poderia ser considerada apenas uma demonstração de oportunismo caso não beirasse à chantagem e à covardia. Para começar, eles atribuem a “recusa” do governo em atender seus pedidos a uma suposta insensibilidade do ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicas, comandado por Ester Dweck. A pasta já apresentou duas propostas de reajustes aos funcionários do IBAMA. Ambas foram recusadas
A ministra do Meio Ambiente, por sua vez, nunca abriu a boca para criticar o comportamento de seus subordinados nem para atribuir a eles a responsabilidade pelo desempenho medíocre do governo nas questões ambientais, especialmente no que se refere à preservação da Amazônia e do Cerrado. Em seu único comentário público sobre o assunto, durante uma visita ao Rio, Marina Silva afirmou que os funcionários do IBAMA têm “consciência ambiental”. Só se esqueceu de explicar como como essa consciência se manifesta.
À boca pequena, circula por Brasília a informação de que a decisão dos companheiros de cruzar os braços e receber os salários sem trabalhar, como tem acontecido desde o início do ano, é considerada pela ministra, no mínimo, como uma medida conveniente. Pelo que se comenta, ela vê a paralisação dos servidores do IBAMA uma forma de se esquivar da cobrança por sua posição em relação à exploração de petróleo na chamada Franja Norte, que vai da costa do Rio Grande do Norte à do Amapá, passando pela foz do rio Amazonas.
Enquanto a turma estiver fazendo corpo mole e recebendo os contracheques sem cumprir com suas obrigações e sem ser cobrada por isso, a ministra estará livre das críticas dos que defendem a exploração racional dos recursos da Amazônia. Os projetos que precisam andar para movimentar a economia podem esperar...
O PRIMO DO HOMEM — Com apoiadores de primeira hora como o pessoal do IBAMA, o governo Lula não precisa de inimigos. Os que ele tem dentro de casa já são suficientes para causar embaraços ao governo. Além dos servidores do IBAMA, existe outro foco de potenciais aliados que frequentemente criam problemas políticos. Um deles gravita em torno do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e de suas conexões com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Neste mês, como sempre fazem em abril, os “ativistas” do MST, que dizem lutar pela reforma agrária, mas que, na verdade, parecem mais interessados em vender bonés para a esquerda festiva exibirnos passeios matinais pelo calçadão de Ipanema, promoveram um monte de invasões. E, como sempre fazem, se apoiaram em suas ideias políticas que já eram velhas no século passado para criar embaraços para o governo. Em um caso especial, eles passaram a hostilizar o superintendente do INCRA em Alagoas. Em protesto contra ele, chegaram até a invadir a Superintendência do órgão em Maceió. Fizeram tanta pressão que acabaram tornando impossível a permanência do funcionário no posto.
O nome do superintendente que entrou na mira do MST era Wilson Cesar de Lira Santos, um bacharel em direito que estava no cargo desde 2017. Ou seja, chegou láno governo Michel Temer, permaneceu na cadeira durante os quatro anos de Bolsonaro e sobreviveu ao primeiro ano do novo governo Lula. Até ser exonerado, dias atrás, pelo ministro da Reforma Agrária, Paulo Teixeira.
MESMO BARRO — Substituir funcionários públicos em cargos de chefia é fato corriqueiro na administração pública e a troca não teria qualquer repercussão se não fosse um detalhe importante. Wilson chegou aonde chegou e sobreviveu tanto tempo no posto devido à força de seu padrinho: ninguém menos do que seu primo Arthur Lira, o presidente da Câmara.
Isso significa o seguinte: Teixeira poderia mexer em 26 das 27 superintendências que o INCRA tem pelo país afora sem que isso significasse o menor problema para o governo. A única que a prudência recomendava deixar como estava era justamente a de Alagoas. O estado, com todo respeito, tem muito pouco, quase nada, a contribuir para o processo de Reforma Agrária e nada do que for feito ali alterará as estatísticas sobre a questão fundiária no país. Por uma razão muito simples: não há terras abundantes para se distribuir. Com uma extensão de pouco mais de 27,8 mil quilômetros quadrados, o estado representa menos de meio por cento do território nacional.
Nada abalaria o prestígio de Teixeira se ele tivesse deixado o primo Wilson quieto em seu canto. O ministro, no entanto, preferiu dar ouvidos aos companheiros do MST, que promoveram a confusão que promoveram só para criar constrangimento e encostar Lira contra a parede em pleno ano eleitoral. Ao fazer o jogo do MST, no entanto, Teixeira cutucou Lira em seu próprio território e deve ter levado um pito fenomenal de Lula.
Tanto assim que, na sexta-feira, no lançamento do Programa Terra da gente, destinado a apoiar a agricultura familiar, o ministro cobriu o presidente de elogios. Falou bem do chefe até para elogiar um programa de quem nunca ouviu falar antes, destinado a apoiar a agricultura em terras quilombolas. Só que o estrago já estava feito e a reação de Lira já estava produzindo desconforto.
Lira não é contra nem a favor do governo. Gente como ele só têm um lado na política: o seu próprio. Apenas uma boa dose de ingenuidade, portanto, pode explicar a satisfação que alguns integrantes do atual governo demonstraram quando ele, ainda antes da posse de Lula, deixou de agir como um bolsonarista raiz e passou a se comportar como se fosse petista desde criancinha. O que parecia ser uma adesão a Lula não passou, na verdade, de uma mudança de lado destinada a deixar tudo exatamente como estava.
Lira é assim mesmo. Sua força política depende da proximidade com o governo — qualquer que seja o governo. Mas, para exercê-la, ele precisa mostrar o tempo inteiro que o governo é que depende dele—e não o contrário. Este é o ponto que interessa: ao jogar com habilidade o jogo que domina a atual política brasileira — e que, é bom repetir, hoje parece ter como principal característica a briga não por ideias, mas por verbas —, Lira se torna útil aos deputados na hora de lhes prometer dinheiro público. E, ao mesmo tempo, se tona útil ao governo na hora de prometer votos no Congresso.
O problema é que políticos como ele só conseguem entregar aquilo que prometem caso não sejam desafiados em seu poder. Para eles, ter seu poder contestado em seu próprio território, como aconteceu no caso da dispensa de seu primo, é uma ofensa que põe em xeque a sua força. Tanto assim que, depois da demissão, ele acusou o golpe.
Sem poder criticar o presidente Lula, com quem negociou os acordos que previam emendas em troca de votos, ele passou a criticar abertamente o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, a quem chamou de “incompetente” e de “desafeto pessoal”. No final das contas, a consequência mais provável dessa confusão que poderia ter sido evitada se Paulo Teixeira não quisesse fazer graça para os “aliados” do MST e se envolvesse numa briga regional desnecessária, é que o governo terá que tirar mais dinheiro do cofre, e depressa, se quiser ver os temas de seu interesse aprovados no Congresso.
ILUSÃO PASSAGEIRA — Que relação pode existir entre os problemas mencionados ao longo deste texto? O que a operação “me engana que eu gosto” levada adiante pelos funcionários do IBAMA tem a ver com a inabilidade que elevou as picuinhas regionais do INCRA de Alagoas à condição de problema nacional? O que o apetite desmedido dos parlamentares da chamada “base aliada” por emendas constitucionais tem a ver com tudo isso?
No fundo, no fundo, todo esse debate diz respeito à falta de articulação política e da definição clara do rumo que o governo pretende seguir. Ao distribuir as vagas no ministério entre políticos que têm agendas próprias e não necessariamente convergentes, o governo acabou estimulando a criação de um ambiente onde cada um parece agir por sua própria conta. Cada um fala sua própria língua, se guia por seu próprio interesse e, em meio a tudo isso, ninguém parece se entender.
No final das contas, o receio que se tem é o de que aquela que poderia ser a principal marca do terceiro mandato de Lula —ou seja, a recuperação da economia, a retomada do desenvolvimento e a volta do pleno emprego — pode ficar pelo meio do caminho. Ela corre o risco de não acontecer devido a uma sucessão de erros que o próprio governo vem cometendo justamente naquele que parecia ser seu ponto mais forte: a grande habilidade e capacidade de articulação política do presidente. Se esse quadro não mudar e todos não passarem a andar na mesma direção, problemas como esse se tornarão ainda mais frequentes. E as promessas de um novo país feitas por Lula desde a campanha não terão passado, como dizia Chico Buarque de Hollanda, de uma “ilusão passageira, que a brisa primeira levou”.