Brasília foi palco na semana passada de dois movimentos que comprovam o desencontro das opiniões nacionais em torno de um tema mais do que importante para a vida do país. Trata-se do tamanho do Estado brasileiro. Para o governo, esse não parece ser um problema para ser levado a sério. A impressão que se tem é a de que esse tipo de preocupação passa longe do pensamento de quem está dentro da máquina. Para a sociedade, a questão sempre se traduz em aumento da sobrecarga tributária e na sensação de quanto mais impostos são pagos, pior é a qualidade do serviço público.
A despreocupação do governo com o inchaço da máquina estatal e com seu peso sobre os ombros do contribuinte se manifestou mais uma vez com o anúncio feito pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na terça-feira, dia 29 de agosto. Ele declarou a intenção de acrescentar mais uma pasta aos 37 ministérios que já existem em sua gestão. A pasta seria responsável pelas micro e pequenas empresas, pelos empreendedores individuais e pelas cooperativas do país.
A explicação para mais esse puxadinho confusa estrutura do Estado brasileiro não é convincente. Segundo Lula, "nós sabemos que tem muita gente que não quer carteira assinada". Quer trabalhar por conta própria. Sendo assim, de acordo com o raciocínio do presidente, é necessário criar um "ministério específico para cuidar dessa gente".
Na mesma semana em que Lula fez esse anúncio, o Instituto Unidos Brasil (que não tem relação com o partido União Brasil) reuniu 15 frentes parlamentares em torno de um manifesto que prega um movimento na direção contrária. O grupo, que reúne mais de 400 apoiadores, tem objetivos muito bem definidos. Sua intenção é trabalhar pela geração de empregos, pela segurança jurídica, pela reforma e simplificação do sistema tributário e pela melhoria do ambiente de negócios no país. Em nome disso, ele está propondo, agora, uma reforma administrativa ampla, profunda e imediata no Estado brasileiro.
O documento com a defesa dessa ideia foi entregue ao presidente da Câmara, Arthur Lira, na quarta-feira, dia 30, ou seja, um dia depois de Lula prometer engordar ainda mais a máquina do estado com a criação do ministério destinado a cuidar das pequenas empresas — que, convém lembrar, já existiu no governo de Dilma Rousseff e desapareceu sem deixar um pingo de saudade entre os pequenos empresários do país.
A proposta de reforma administrativa chegou às mãos de Lira pelas mãos de parlamentares que integram as frentes parlamentes que assinaram o documento. Elas foram lideradas pela Frente Parlamentar do Empreendedorismo. Ou seja, enquanto o presidente da República se vale do apoio aos empreendedores como pretexto para inchar ainda mais a máquina do governo, aqueles que se propõem a defender os interesses desses mesmos empreendedores no Parlamento pedem um Estado mais ágil, mais leve, menos oneroso, menos burocrático e menos intervencionista.
Ambiente hostil
Antes de seguir com a discussão, é bom esclarecer um ponto: ninguém aqui defende a ideia de um Estado mínimo e responsável apenas pelos serviços básicos de saúde, educação e segurança — como prega a cartilha liberal mais fundamentalista. O Brasil é um país complexo e o Estado, entre nós, ainda precisa ter uma atuação mais presente, até como indutor do desenvolvimento. O que se defende, aqui, é um modelo de Estado mais eficiente e menos perdulário do que o brasileiro, que pesa excessivamente sobre os ombros do contribuinte, mas não entrega à sociedade serviços compatíveis com seu custo exagerado. Isso porque praticamente tudo o que ele arrecada é gasto com a manutenção da própria máquina.
Essa discussão, pelo visto, não integra o repertório do governo. Como já ficou claro para todo mundo, a principal inspiração para a criação desse novo ministério não parece ser o cuidado com os que não pretendem trabalhar com carteira assinada. Mesmo porque, nem os empreendedores nem qualquer outro grupo que necessite de apoio oficial para ir em frente neste ambiente hostil em que se transformou o mercado brasileiro precisa, a rigor, de contar com uma pasta específica para cuidar de seus interesses.
O que as empresas brasileiras precisam é de um ambiente de negócios mais saudável. Precisam de menos burocracia e de um tratamento mais respeitoso por parte do Estado. Não é segredo para ninguém que o Brasil é um dos ambientes mais hostis ao empreendedorismo que se conhece entre as economias relevantes do mundo — e a criação de um ministério "específico", ao invés de facilitar, pode até aumentar o grau de intervencionismo e criar ainda mais dificuldades para o empreendedor.
Para estimular o empreendedorismo, a princípio, não é necessário criar mais um ministério. Basta orientar a máquina no sentido de definir políticas públicas bem estruturadas de apoio a esse contingente vital para a economia brasileira. Ou, então, coordenar uma ação envolvendo o Sebrae, o Banco do Brasil, a Caixa e o BNDES para estruturar projetos que deem suporte, aumentem a eficiência e melhorem a qualidade do ambiente de negócios para as pequenas empresas — que, segundo as estatísticas oficiais, são responsáveis por algo entre 70% e 80% dos empregos com carteira assinada gerados no Brasil nos últimos anos.
A intenção que motiva Lula ao criar o novo ministério, à primeira vista, tem menos a ver com os interesses dos empreendedores do que com os interesses políticos do governo. A ideia é encontrar um lugar para acomodar o deputado maranhense André Fufuca na Esplanada. Integrante do PP, Fufuca é um ex-opositor que se converteu em governista convicto diante da promessa de ganhar um ministério para chamar de seu.
Quando a nomeação foi consumada, Lula poderá contar com o apoio da bancada de seu partido nas votações no Congresso. Sem essa nomeação, nem pensar.
Governo estatizante
Outras mudanças no ministério vêm sendo estudadas — mas, até segunda ordem, elas não envolvem a criação de novas pastas. O pernambucano Silvio Costa Filho, do Republicanos, outro ex-bolsonarista recém-convertido ao lulismo radical, fala e age como se já tivesse sido nomeado para substituir o inoperante Márcio França no Ministério dos Portos e Aeroportos.
O ministério prometido a Costa Filho é resultado da subdivisão da antiga pasta da Infraestrutura, que, no governo de Jair Bolsonaro, também reunia as atribuições do atual Ministério dos Transportes. A intenção ao repartir um ministério em dois não foi, é evidente, a de aumentar a eficiência do governo. Foi, sim, a de acomodar mais interesses dentro da equipe.
Tudo indica que, para os objetivos do governo, o Ministério dos Portos e Aeroportos será mais útil nas mãos de Costa Filho do que vem sendo sob os cuidados de França. Tanto assim que o provável futuro ministro já começou a falar como se já ocupasse o cargo. Sem ter, ainda, qualquer responsabilidade formal sobre os órgãos nem sobre os temas que são de responsabilidade da pasta, o parlamentar anunciou na semana passada ser contrário à privatização do Porto de Santos, em São Paulo, maior terminal de movimentação de carga marítima da América Latina.
A declaração de Costa Filho, além de inoportuna — afinal, o lugar ainda está ocupado e, até segunda ordem, França é o ministro — foi desnecessária. Todo mundo sabe que, para políticos como ele, o ministério que vale é aquele que tem cargos para acomodar políticos amigos e que oferece a chance de influenciar negócios com fornecedores privados. Sem o terminal de Santos no organograma, a pasta dos Portos e Aeroportos perderia boa parte da relevância para gente como ele.
Essa turma trata o Estado como se fosse uma propriedade privada, destinada a atender seus interesses e faz tudo que está a seu alcance para pular para dentro da máquina pública e se apropriar dela. Para essa gente, quanto maior e mais parruda for a estrutura do governo, melhor... Não importa quanto ela custe para o contribuinte brasileiro. O dinheiro que o cidadão ganha com dificuldade e entrega aos cofres do Estado na forma de impostos é gasto com a maior facilidade do mundo pelos que estão dentro da máquina.
Déficit zero?
Com toda sinceridade, ao invés de sair criando ministérios a torto e a direito com a intenção de transformar antigos adversários em aliados, Lula poderia fazer como fez em seu primeiro mandato e conquistar a confiança do mercado antes de começar a gastar. Na semana passada, o Banco Central divulgou os resultados da dívida pública e anunciou que a União e as empresas estatais registraram no mês de junho um déficit conjunto de R$ 33,4 bilhões. A conta se completa com outros R$ 4,2 bilhões devidos pelos estados e pelos municípios. Em julho de 2022, as contas públicas registraram superávit de R$ 20,4 bilhões.
É lógico que essa questão preocupa o governo e que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, sabe da importância de manter as contas em ordem. Na semana passada, a equipe econômica virou as contas públicas de pernas para o ar para conseguir fechar a previsão de R$ 168 bilhões em receitas extraordinárias com as quais pretende zerar o déficit fiscal em 2024.
Na proposta de orçamento encaminhada ao Congresso na quinta-feira, o governo prevê que o déficit — que este ano foi estimado em R$ 145,3 bilhões — dará lugar a um superávit discreto, de R$ 2,8 bilhões, em 2024. Só o tempo dirá se essa meta será alcançada — mas, diante da pressão que o governo vem sofrendo para aumentar os gastos, ninguém em sã consciência é capaz de apostar que isso acontecerá.
Haddad, até pode dever de ofício e por ter sensibilidade política, sabe que o desafio de equilibrar as contas é enorme. "Mas não podemos desistir dele", diz. O orçamento prevê para o ano que vem uma despesa total da ordem de R$ 2,7 trilhões e uma receita de R$ 2,7 trilhões. Prevê ainda investimentos no valor de R$ 69,7 bilhões e uma expansão de 2,3% do PIB.
O texto reserva R$ 37,6 bilhões para as emendas apresentadas pelos parlamentares. Por esse valor, cada um dos 513 deputados federais teria o direito de ordenar gastos de até R$ 38 milhões. E cada um dos 81 senadores terá R$ 66 milhões para destinar a projetos de seu interesse. A turma, evidentemente, achou o valor modesto e não faz o menor segredo em torno da intenção de aumentar o valor previsto para as emendas em pelo menos R$ 20 bilhões.
Furor arrecadatório
Apenas essa mania dos deputados de avançar sobre as atribuições do Poder Executivo — que, a rigor, é quem deveria ter a última palavra em matéria de gastos públicos — já põe em risco o cumprimento da promessa de se zerar o déficit. Outras frentes de pressão serão abertas. O texto encaminhado ao Congresso não prevê, por exemplo, aumentos de salário ao funcionalismo público.
Resta saber se um partido que tem nos servidores públicos uma de suas principais bases de apoio, como é o caso do PT, resistirá à pressão por aumentos ou se assumirá a postura de sempre e apoiará a concessão dos aumentos que o próprio governo não se considera em condições de dar. "Isso ficará para depois", já prometeu o secretário de Orçamento do Ministério do Planejamento, Paulo Bijos.
Com ou sem o aumento aos servidores, o certo que o governo pretende zerar o déficit público à custa do aumento da arrecadação — já que ninguém parece cogitar em reduzir as despesas correntes do Estado. Com os assalariados já sufocados por mais impostos do que são capazes de suportar, o furor arrecadatório do governo, desta vez, está voltado contra as pessoas jurídicas, que daqui por diante terão que recolher mais tributos do que já recolhem. Também está voltado para medidas de difícil aplicação, como a taxação dos rendimentos dos investimentos feitos por brasileiros no exterior.
Esse não é, a bem da verdade, um problema exclusivo do governo atual. A tradição brasileira — até pelas amarras populistas que a lei prevê para assegurar os privilégios do funcionalismo — não dá muito espaço para a redução da máquina lerda e pesadona do Estado. Sendo assim, e enquanto essas amarras não forem desatadas, a solução para a busca do equilíbrio fiscal continuará sendo o aumento de impostos. Mesmo no Congresso — que tem sido uma fonte constante de pressão pela elevação de gastos — pouco se discute aquilo que Instituto Unidos Brasil vem propondo. Ou seja: o trabalho para convencer a casa da necessidade de se reduzir uma máquina pública que tem um custo extremamente elevado diante do muito pouco que entrega à sociedade será enorme.
Um dos trechos do manifesto que foi entregue a Arthur Lira na semana passada diz que "pesquisas comprovam inclusive que cortes nos gastos públicos são mais propensos a resultar em redução do déficit e estímulo ao crescimento do que aumentos de impostos. Isso mostra que, quando o Estado diminui suas despesas e regulações excessivas, as empresas podem se beneficiar de um ambiente mais favorável para investimento e expansão, levando à criação de empregos e aumento da produção".
Esse é o ponto. O problema, no entanto, é que a gastança de dinheiro público, além de fazer parte da tradição do Estado brasileiro, é estimulada pela estratégia que o governo vem adotando de atrair para sua base de apoio partidos que até ontem falavam cobras e lagartos do presidente Lula. Será que isso dará ao presidente a "governabilidade" que ele busca ao trazer essa turma para seu lado? Será que não existe o risco de, ao menor sinal de problema, esses aliados de ocasião não agirem exatamente como fizeram com a ex-presidente Dilma Rousseff, que ficou sem apoio justamente no momento em que mais precisou de alguns dos políticos que tentou atrair com cargos em seu ministério?
É evidente que sobra em Lula a habilidade política que faltava a Dilma. Ter gente como Fufuca e Costa Filho a seu lado talvez seja o caminho que permitirá ao presidente manter a situação sob controle. Tomara que dê certo.