Um estudo das Nações Unidas lançado na quarta-feira da semana passada trouxe de volta a discussão de um problema que há muito tempo já deveria ter sido banido das primeiras páginas dos jornais do país. Trata-se da fome no Brasil. Publicado em conjunto por cinco agências da ONU, o relatório sobre o Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI, na sigla em inglês) mostra que o Brasil tem 20,1 milhões de pessoas — ou 9,9% da população — em estado de insegurança alimentar grave. E que um a cada três brasileiros — ou seja, 70,3 milhões de pessoas — nem sempre teve condições de se alimentar de forma adequada entre 2020 e 2022.
O estudo anterior, que focou o período de 2014 a 2016, indicava que 1,9% da população brasileira — ou um total de 4 milhões de pessoas naquele momento — vivia uma situação de restrição alimentar severa. E que o atual número de pessoas em situação de insegurança alimentar moderada ou severa (os mencionados 70,3 milhões de brasileiros) corresponde hoje a quase duas vezes aos 37 milhões que viviam nessa situação no levantamento anterior. A fase de coleta de dados desta última pesquisa coincide com o período mais agudo da pandemia da covid-19 e isso, naturalmente, teve influência sobre os resultados do levantamento.
Mesmo assim, ela mostra que a fome absoluta — que se reflete na taxa de desnutrição da população — está hoje numa situação melhor do que a de 20 anos atrás. Entre 2004 e 2006, a taxa de desnutrição alcançava 6,5% da população brasileira. Entre 2020 e 2022, ela foi de 4,7%. Isso significa uma redução dos 12,1 milhões de pessoas em condições de fome absoluta naquele momento para os atuais 10,1 milhões.
MEDIDAS EFETIVAS
Não interessa, neste momento, ver a queda nos indicadores de fome absoluta como um avanço a ser comemorado. Interessa menos ainda se apegar ao impacto econômico da pandemia para justificar o aumento da fome no Brasil. Independentemente do número de atingidos, a situação é difícil — e não pode, de forma alguma, inspirar os raciocínios superficiais que inspiram as políticas populistas. É preciso que, sem gastar mais tempo do que já se gastou com a discussão dos problemas sociais que mantêm uma parte considerável da população brasileira em situação de extrema pobreza, se adotem medidas efetivas para eliminar a fome no Brasil.
A pior maneira de lidar com essa situação, sem dúvida, é seguir pelo caminho percorrido pelo ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Wellington Dias (PT-PI) ao se posicionar frente à pesquisa da ONU. Ao falar sobre os números — e sem fazer qualquer consideração sobre o momento crítico em que eles foram apurados — Dias logo tratou de culpar o governo anterior por uma situação que existe desde que o Brasil é Brasil.
Segundo o ministro, o aumento da fome do Brasil deve-se única e exclusivamente ao “desmonte das políticas públicas sociais dos últimos anos”. Ele disse, também, que, além de retomar o programa Bolsa Família (que embora tenha mudado de nome no governo passado, nunca deixou de existir desde que foi criado), o Brasil se prepara para lançar o Plano Brasil Sem Fome.
O novo programa, conforme explicou Dias, representará a ação conjunta de 24 ministérios e terá como objetivo tirar o país do mapa da fome da ONU até 2030. Ele tratará, também, redução da pobreza extrema e da eliminação da insegurança alimentar e nutricional. Tomara que dê certo! Tomara que, desta vez, o Brasil adote políticas de combate à fome mais consistentes e menos improvisadas do que as que foram aplicadas, por exemplo, no programa Fome Zero, do primeiro governo Lula e que desapareceu sem deixar um único vestígio de sua existência. Tomara que, desta vez, as providências efetivas para se eliminar a tragédia da fome no país tenham mais importância do que as campanhas de marketing feitas para divulgar as ações do governo.
POLÍTICAS INCONSISTENTES
Um minuto! Ninguém está colocando em dúvida, aqui, a intenção do governo atual em eliminar a fome. Também não existe qualquer questionamento em relação à seriedade dos dados que mostraram a redução da fome no país durante os dois primeiros mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a passagem de sua sucessora Dilma Rousseff pelo governo. Os números mostram que, entre 2003 e 2013, milhões e milhões de brasileiros deixaram para trás a linha de pobreza e passaram a ter mais acesso aos alimentos do que tinham antes.
Não se trata, portanto, de se questionar os números, mas de se perguntar: por que tanta gente que havia saído da miséria voltou para essa situação nos últimos anos? Por que o país não conseguiu transformar o estado de segurança alimentar que proporcionou a seus cidadãos mais vulneráveis numa situação permanente e, em pouco tempo, viu os que haviam escalado posições na pirâmide social baixarem novamente à condição anterior? Essa volta talvez se explique pela inconsistência das políticas que tiraram as pessoas da pobreza que, certamente, não eram sólidas o suficiente para mantê-las fora do perigo.
LADO A LADO
É impossível discutir a questão da fome do Brasil sem considerar a condição do país como um dos maiores produtores de alimentos do mundo. Tal contradição, como se sabe, não é recente. Qualquer que seja o número real de brasileiros que vivem em situação de insegurança alimentar, é inegável que o país produz comida em quantidade suficiente para matar a fome de seus 203 milhões de habitantes.
Não se trata, é evidente, de querer guiar o debate por uma questão meramente estatística entre a produção e o acesso aos alimentos no Brasil. A fome é uma realidade e, ainda que o número real de atingidos por ela seja muito menor do que foi apontado pela pesquisa da ONU ou que a produção de comida fosse ainda maior do que é, precisa ser tratada com mais cuidado pelo governo e pela sociedade.
Também é inegável que, independentemente das tentativas do ministro Wellington Dias e de dezenas de outros políticos, de reduzir o problema da segurança alimentar a uma questão relacionada com as prioridades do partido que ocupa o poder, todo mundo sabe que as raízes primárias da fome no Brasil são de natureza econômica.
Em outras palavras, isso quer dizer o seguinte: a melhor política de combate à miséria que pode existir no mundo é o crescimento econômico e o aumento da oferta de emprego e da renda da população. A questão é que, no ponto em que a situação chegou, as providências voltadas especificamente para o combate à fome não podem esperar, mas precisam andar lado a lado com um conjunto de providências destinadas a estimular a economia e promover o crescimento. Acertaram, portanto, os políticos que tiveram a ideia de tirar os produtos da cesta básica da lista de produtos sobre os quais incidirão impostos na Reforma Tributária.
EFICIÊNCIA LOGÍSTICA
Em resumo, a fome é inaceitável e as medidas para combatê-la não podem esperar pelo crescimento da economia para serem implementadas. É preciso que o país a combata com medidas técnicas e eficazes que — sem o apelo populista do Fome Zero ou de qualquer outra medida de caráter meramente marqueteiro — faça com que a comida produzida com abundância nas fazendas da região Centro-Oeste chegue em quantidade suficiente às mesas das famílias vulneráveis do Nordeste, do Sudeste ou de qualquer outra parte do país.
Sim. Uma política de combate à fome no Brasil precisa incluir, sem sombra de dúvida, um programa eficiente de logística. Precisa prever, da mesma forma, a recuperação urgente das estradas por onde transitam os caminhões carregados de alimentos brasileiras. Precisa olhar com mais cuidado para uma realidade que — por questão de armazenamento falho, manejo inadequado e distribuição ineficiente — faz com que algo entre 30% e 50% da produção brasileira de frutas e hortaliças se perca ao longo da cadeia que vai do produtor até o consumidor final.
Não se pode falar em combate à fome sem se falar em aproveitamento integral dos alimentos produzidos no país e do uso social da produção que, nas condições atuais, é destinada à lata de lixo antes que se transforme em alimento para quem dele necessita. Outro problema igualmente sério é o da perda de grãos entre a fazenda onde são produzidos e seu destino final — seja esse destino os portos responsáveis pelo escoamento da produção ou os centros de consumo nas cidades brasileiras.
De acordo com um estudo conduzido pelos especialistas Thiago Pera e José Caixeta Filho, da Escola Superior de Agricultura Luís de Queirós, da Universidade de São Paulo, algo em torno de 1,1% a 1,5% da soja embarcada nas fazendas acaba se perdendo por falhas logísticas decorrente de condições inadequadas de transporte ou de armazenamento. Um dos problemas apontados pelo estudo é o que o Brasil produz mais alimentos do que é capaz de armazenar em condições seguras para o consumo.
Os silos e armazéns existentes no país são suficientes para abrigar, na melhor das hipóteses, 70% da safra brasileira de grãos. O recomendável pelas boas técnicas internacionais é uma capacidade de armazenamento que chegue a 120% da safra e permita que os grãos sejam guardados de forma adequada de um ano para outro.
Independentemente das razões das perdas, o percentual de desperdício de grãos — que, como se viu, é de algo entre 1,1% e 1,5% do total transportado — parece mínimo. Mas quando esse percentual se transforma em quantidade de alimento é que se percebe sua verdadeira dimensão. Apenas os grãos desperdiçados já seriam suficientes para alimentar milhões e milhões de pessoas. No ano em que foi feito o levantamento — 2015 —, o desperdício na rota entre a fazenda e o destino final significou 1,076 milhão de toneladas.
Pela cotação da época, a soja que ficou pela estrada teria rendido R$ 1,3 bilhão de reais. Pode, mais uma vez, parecer pouco dinheiro diante das necessidades do país para o combate da fome e da miséria. Mas, se esse e outros ralos que sorvem os alimentos produzidos no Brasil forem tapados, o combate à fome ficará mais fácil.
NÚMEROS ANTIGOS
Alguém notará que os dados mencionados acima não são recentes. De fato, não são: eles foram levantados há quase dez anos. Isso, ao invés de desautorizar as conclusões tiradas com base neles, apenas torna a situação mais dramática. Os números constam de estudo de 260 páginas chamado Perdas e Desperdício de Alimentos — Estratégia para Redução, produzido pela Câmara dos Deputados ao longo da Legislatura que se encerrou em 2019.
Ou seja, o Parlamento investiu tempo, dinheiro e energia para produzir um estudo detalhado, com diagnósticos e sugestões para se evitar o desperdício de alimentos e seu aproveitamento nas políticas de combate à fome. O texto também lista dezenas de leis e outras medidas legais aprovadas ou por aprovar na Câmara a respeito desse assunto. Apesar da riqueza do material, nenhuma política consistente, que tratasse essa questão de forma responsável e transformasse o combate à fome em política de Estado — e não desse ou daquele governo — foi aprovada no parlamento.
Essa questão é fundamental. Em 1993 — há exatos 30 anos, portanto —, o sociólogo Herbert de Souza, o saudoso Betinho, sacudiu o Brasil com sua Ação de Cidadania Contra a Fome. O lema da campanha, que pela primeira vez chamou a atenção para a importância de se adotar ações efetivas de combate à fome, não poderia ter sido mais eficaz: “Quem tem fome tem pressa”. Independentemente do êxito de Betinho ao alertar para o tamanho do problema e jogar luz sobre as estatísticas preocupantes da desnutrição no país, o certo é que o Brasil, nesses 30 anos, poderia ter avançado muito mais do que avançou e, com medidas sérias e consistentes, ter reduzido a questão da fome no país ao mínimo possível. No entanto, não foi o que aconteceu.
Outro lado doloroso dessa realidade é que o número de pessoas em situação de vulnerabilidade alimentar extrema no país vem sendo utilizado de forma irresponsável por políticos que parecem mais interessados em vender seu peixe ideológico do que em enfrentar a questão com seriedade. Em janeiro deste ano, durante do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, a ministra do Meio Ambiente Marina Silva, para citar apenas um exemplo, fez uma declaração absurda.
“No meu país tem 120 milhões de pessoas que estão passando fome”, disse ela. Certamente alertada para o absurdo estatístico que havia cometido, Marina voltou ao assunto no dia seguinte e, sem pedir desculpas pelo equívoco que cometeu, reduziu a quantidade de famintos em condição extrema para 33 milhões de brasileiros — número que o estudo recente da ONU acaba de reduzir mais uma vez para 20,1 milhões.
Não importa. Para quem leva essa questão a sério e não quer ver a dificuldade extrema das pessoas que sofrem com a fome se transformar em bandeira política nas mãos de quem quer que seja, não importa se o número de famintos no Brasil é de 40 milhões, de 20 milhões, de 10 milhões ou a metade disso. O que importa é que já passou da hora de o país encarar situações dessa natureza com mais seriedade e menos proselitismo. E isso é para já!