Nuno Vasconcellos
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Nuno Vasconcellos

Uma disputa que vem se arrastando pelos últimos anos mostrará, dentro de muito pouco tempo, se o Brasil tem alguma chance de sonhar com um futuro mais próspero ou se está, como parece estar às vezes, condenado a ser um país atrasado e dominado por ideias que já eram velhas no século passado. Essa disputa é entre o agronegócio, único ramo da economia brasileira que teve um crescimento exponencial e evoluiu nos últimos anos, e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), um grupo sem personalidade jurídica definida, sem CNPJ e sem uma direção formal que se responsabilize pelos atos de seus “militantes”. Um grupo que, ao invés de olhar para a frente e se modernizar, anda cada vez mais preso às ideias maniqueístas que passaram a fazer parte do debate político no final do Século 19.

O discurso em torno desse conflito, como não poderia deixar de ser, é repleto de imprecisões. Algumas delas podem até ser esclarecidas caso a CPI proposta na Câmara para discutir a questão do MST seja instalada e discuta a questão com seriedade. O mais provável, porém, é que — com ou sem CPI —, o MST continue fazendo o que estiver a seu alcance para impedir a modernização do campo e jogando a culpa para o outro lado.

Isso é parte do jogo. A turma que aplaude o MST e que engloba, inclusive, gente do altíssimo escalão do novo governo, às vezes se refere a seus adversários como se o agronegócio ainda fosse dominado pelos coronéis latifundiários que, durante a República Velha, mandavam e desmandavam no país.

A verdade, porém, é que, nas últimas décadas, nenhum setor da economia brasileira evoluiu tanto quanto o agronegócio — e essa evolução vai muito além dos elevadíssimos ganhos de produtividade da lavoura brasileira. Ela se mostra, também, nas relações de trabalho, na proteção ambiental, nos cuidados sanitários, na automação, na conexão com os mercados internacionais e em tudo o que faz parte da economia 5.0. Esse é um dos pontos a serem levados em conta na discussão: o campo brasileiro se modernizou; o MST, não!
Outro ponto é que, sem uma agricultura altamente produtiva, nem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nem qualquer outro que seja eleito para ocupar o principal gabinete do Palácio do Planalto conseguirá levar adiante ações capazes de erradicar a fome no Brasil. E sem uma pecuária moderna e eficiente, jamais será possível garantir ao conjunto da população uma cota satisfatória de proteína animal e muito menos sonhar em assegurar para todos a picanha do churrasco no final de semana.

A VÍTIMA PAGA O PREJUÍZO

Claro que nem tudo é perfeito no campo. Longe disso! Existem no universo do agronegócio brasileiro pessoas que ainda resistem à evolução e cometem erros que mancham a imagem de todo o setor. O caso recente dos trabalhadores baianos submetidos a condições degradantes na colheita da uva do Rio Grande do Sul, por exemplo, é gravíssimo. Esse ou qualquer outro episódio do gênero deve ser tratado com todo o rigor da lei e os envolvidos, punidos de forma exemplar. É um erro, porém, tratar um caso escandaloso como a norma das relações que imperam no campo hoje em dia.

É preciso observar que nesse caso e em muitos outros, os responsáveis pelo erro foram identificados, indiciados pelo Ministério Público e processados na forma da lei. A Aurora, a Garibaldi e a Salton, as vinícolas associadas ao erro, foram identificadas, denunciadas e terão que se esforçar para livrar suas marcas do erro que cometeram. E quando o erro, como é frequente, parte do MST? Quem responde e paga por ele?

Quem paga pelo rastro de prejuízos que fica no caminho a cada vez que a malta se movimenta? Ninguém! Ou melhor: quando o “movimento” invade uma área produtiva, destrói uma lavoura, ateia fogo em tratores, depreda uma pesquisa científica em andamento ou, às vezes, até mata pessoas que tentam impedir sua ação, como já aconteceu dezenas e dezenas de vezes, quem arca com o prejuízo é a própria vítima.

AFINIDADES E DIFERENÇAS

O agronegócio, como não poderia deixar de ser, foi envolvido no clima de divisão que domina o país e, diante do apoio histórico do PT às invasões de terra promovidas pelo MST, caiu nos braços de Jair Bolsonaro. Tanto assim que os estados em que essa atividade mais prosperou — Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul — deram ao ex-presidente uma margem expressiva de votos e, se dependesse apenas deles, Lula jamais teria voltado à presidência.

O fato, porém, é que voltou e isso foi suficiente para que o MST — que praticamente hibernou durante os quatro anos do governo de Jair Bolsonaro — se pusesse novamente em marcha. E, para alegria dos militantes urbanos da esquerda, trouxesse seu discurso anacrônico de volta para o noticiário. É preciso cuidado para lidar com essa questão.

Reconhecer as afinidades entre o PT de Lula e o MST é necessário — mas é igualmente importante identificar as diferenças que existem entre eles. Querer atribuir a Lula a responsabilidade pelas barbaridades praticadas pela turba comandada pelo economista João Pedro Stédile é uma injustiça! Fazer isso seria o mesmo que, por exemplo, culpar o ex-presidente Jair Bolsonaro, em pessoa, pela destruição do relógio que pertenceu a Dom Pedro II na invasão do Palácio do Planalto e de outros danos ao patrimônio público nos atos do dia 8 de janeiro.

O fato de não ter uma existência formal permite que Stédile e os outros dirigentes se escondam atrás da própria informalidade e só assumam a responsabilidade por ações bem sucedidas do MST. Dias atrás, um bando usando bonés, camisetas e outros adereços da organização invadiu a sede da administração da cidade satélite de Brazlândia, no Distrito Federal. A ocupação violenta do prédio público teria sido uma resposta do movimento ao mandato de reintegração de posse de uma área de terras públicas cuja invasão começou, por uma dessas coincidências que tornam o caso mais interessante, no mesmo final de semana em que um grupo de arruaceiros invadiu prédios públicos na praça dos Três Poderes, em Brasília. Talvez para não permitir que a ação desse grupo fosse comparada com a dos bolsonaristas que agiram na praça dos Três Poderes, a direção do MST desautorizar a ação e se eximiu de qualquer responsabilidade por ela...

Sim. Pode ser que não houvesse uma relação direta entre o MST e o grupo que invadiu as terras em Brazlândia. Ou pode ser que houvesse, mas, diante da repercussão negativa, a direção do “movimento” os deixou à própria sorte. Tudo é possível. Em um caso ou no outro, está claro é que a proximidade com o PT é ótima para o MST, mas ainda não sabe ao certo se a companhia da turma de Stédile será confortável ao partido do presidente. Em menos de 100 dias de governo Lula, o grupo já fez mais ou menos 13 invasões de terras — e deu argumento para a movimentação em torno de uma CPI que só interessa à oposição! A maioria dessas invasões se seu nos municípios de Mucuri, Caravelas e Teixeira de Freitas, no extremo Sul da Bahia. Em tempo: não poderia haver cenário melhor do que o Sul da Bahia para expor o anacronismo das ideias e o oportunismo das ações desse grupo.

A VANGUARDA DO ATRASO

É preciso voltar algumas décadas no tempo para entender o que está acontecendo lá agora. Nas últimas décadas do século 20, o extremo Sul da Bahia era um poço de improdutividade, sem a mínima vocação agrícola. Devido ao baixíssimo índice de fertilidade, as terras da região foram consideradas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o órgão público responsável pela questão fundiária no país, inadequadas para a reforma agrária. Pelas condições de exploração da época, seriam necessárias extensões consideráveis para que uma única família pudesse tirar seu sustento da gleba que recebesse. Isso inviabilizava qualquer programa de reforma agrária na região.

A partir de meados dos anos 1980, e por motivos alheios ao MST, a região começou a se transformar. Com técnicas avançadas de cultivo, pesquisa genética avançada e investimentos vultosos por parte de conglomerados brasileiros e estrangeiros, os “latifúndios improdutivos” e as terras devolutas que havia no sul da Bahia e no norte do Espírito Santo passaram a receber extensas plantações de eucalipto. Nas mãos desses novos donos, a região se transformou num dos maiores provedores de matéria prima para a indústria de papel e celulose de todo o mundo. E a oferecer milhares e milhares de empregos a trabalhadores que, antes, não tinham de onde tirar o sustento.

É apenas um exemplo de uma transformação que se deu não apenas o sul da Bahia, mas em várias partes do país. Por razões muito parecidas com essa, a maior parte do campo brasileiro vive hoje uma realidade muito diferente da que vivia no século passado. Para começar, mudanças na legislação fizeram com os latifúndios improdutivos praticamente sumiram do mapa. O custo fiscal de uma terra extensa e sem uso econômica tornou-se tão elevado que o fazendeiro tem duas alternativas: ou põe a propriedade para produzir ou a vende para quem possa explorá-la. Isso não aconteceu por obra do acaso, mas é resultado do trabalho de muita gente.

Essas mudanças, ao contrário do que diz o discurso retrógrado da extrema esquerda, não beneficiaram apenas as grandes propriedades. Para reduzir a tensão no campo brasileiro, o Estado passou a dedicar à questão fundiária um tratamento diferente do que era dado no tempo em que os coronéis e seus jagunços ditavam a ordem no sertão do país. Um dos movimentos mais expressivos nessa direção se deu no governo do ex-presidente Fenando Henrique Cardoso — que conseguiu aumentar de forma exponencial o estoque de terras disponíveis para a reforma agrária.

Em seus oito anos de mandato, FHC desapropriou um total de 3.536 propriedades consideradas improdutivas. Juntas, elas representavam mais de 10,2 milhões de hectares disponíveis para a reforma agrária. Lula e Dilma Rousseff optaram por uma outra estratégia, que também contribuiu para o avanço da reforma agrária. Para evitar discussões que poderiam se prolongar por anos na Justiça, os governos petistas optaram por adquirir propriedades ao invés de desapropriá-las.
Paralelamente a isso, conseguiram, por vias indiretas (já que a falta de um CNPJ impede que o movimento receba dinheiro do governo) financiar alguns projetos de interesse do MST. Inclusive alguns projetos de agroindústria que, por mais sucesso que tenham alcançado, mostraram-se insuficientes para produzir alimentos em escala que dê conta de alimentar as grandes populações urbanas.
Veio o governo Bolsonaro e, com ele, uma nova mudança de postura. Ao invés de ampliar o número de assentamentos, o Incra deu prioridade à legalização e regularização das ocupações já existentes — tornando os ocupantes das glebas menos dependentes do MST. Ao longo dos quase 16 anos de Lula e Dilma, o governo emitiu cerca de 150 mil títulos definitivos de propriedade a beneficiários da reforma agrária. Esse documento, na prática, transforma os ocupantes em proprietários rurais. Em quatro anos, o governo Bolsonaro emitiu mais de 400 mil desses títulos definitivos! Ou seja, transformou trabalhadores sem terra em produtores com terra. Isso foi ótimo para o país e para o campo. E péssimo para o MST...

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