A coluna da semana passada nem bem havia sido impressa quando chegaram as primeiras notícias sobre os temporais que desabaram sobre o município de São Sebastião e outras áreas do litoral norte de São Paulo no último carnaval. Vizinha ao Rio de Janeiro, a região está sujeita às mesmas chuvas torrenciais que, entra ano, sai ano, castigam as encostas da Serra do Mar, provocam deslizamentos, arrastam o que encontram pela frente e tiram vidas, sobretudo, de pessoas que constroem suas moradias no caminho no mar de lama que se forma nessas situações.
O artigo apontava os efeitos positivos que a volta do carnaval teria para a economia depois de dois anos de restrições causadas pela pandemia. O texto também chamava atenção para o aniversário da tragédia que aconteceu na cidade de Petrópolis no ano passado e para os efeitos cada vez mais previsíveis das tempestades de verão castigam e continuarão castigando a região Sudeste nesta época do ano. O fenômeno não é recente, mas aparentemente vem se tornando mais grave. Com adensamento populacional em regiões de risco, os temporais têm tirado vidas, desabrigado famílias e causado danos materiais suficientes para despertar uma reação mais efetiva do poder público. No entanto, e embora não faltem promessas de solução, nada parece ser feito.
No calor da comoção causada pela tragédia, muita coisa é prometida. Mas infelizmente, tão logo as trovoadas se acalmam e as chuvas vão embora, as ações necessárias caem na vala comum da burocracia. Algumas das obras consideradas emergenciais prometidas para evitar a repetição da tragédia de Petrópolis, algumas sequer foram licitadas.
“Não importa se o número de mortes causadas por tragédias desse tipo se contabiliza por unidades, por dezenas ou por centenas”, dizia o texto publicado na semana passada. “O que importa é que a existência de uma única pessoa ameaçada por um fenômeno previsível, que se repete ano após ano (...) significa que o poder público fracassou em uma de suas atribuições básicas — que é a de garantir segurança e bem estar a todos os cidadãos”.
TREINAMENTO E PROTOCOLO
O que vale para Petrópolis vale para São Sebastião. Já passou da hora de as autoridades que têm alguma responsabilidade sobre as regiões litorâneas ou serranas sujeitas aos humores das chuvas de verão — época do ano em que a população local é multiplicada por turistas em busca de agitação ou de descanso nas praias e nas montanhas — assumirem a responsabilidade pela solução do problema, trabalharem juntas e fazer o que for preciso para encontrar uma solução.
O problema não é federal, estadual nem municipal. É de todos. Ao invés de ficar culpando os que vieram antes ou de ficar apontando os dedos umas para as outras, cada autoridade deve chamar o problema para si e começar a tomar as providências que levem ao fim de um drama que já deveria ter sido eliminado. Tempo para isso, não faltou.
No dia seis de fevereiro de 1988 (ou seja, 35 anos atrás), o país se comoveu com a morte de 134 pessoas em razão dos deslizamentos provocados pelos temporais que desabaram sobre a mesma Petrópolis castigada no ano passado. A despeito das promessas feitas na época, o problema só tem aumentado desde então. Um levantamento realizado pelos pesquisadores Eduardo Soares de Macedo e Lucas Henrique Sandre, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo — e que não inclui as vítimas da tragédia da semana passada em São Sebastião — traz números assustadores, que precisam ser levados a sério o mais cedo possível!
Entre 1988 e 2022, um total 4.146 pessoas morreram no Brasil devido a deslizamentos. Embora o ponto mais crítico desse tipo de tragédia seja o triângulo formado pelos municípios fluminenses de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, as 959 ocorrências com vítimas fatais registradas no período alcançaram 269 municípios de 16 estados brasileiros.
Ou seja, o problema é amplo e frequente demais para que ainda não tenha dado origem a um programa permanente de treinamento e gerado um protocolo de ação que mostre a cada bombeiro, técnico, socorrista ou autoridade exatamente aquilo que deve ser feito diante de uma tragédia dessa natureza. Alguns países sujeitos a terremotos — fenômenos que não avisam quando nem onde vão acontecer —, como o Japão e os Estados Unidos, contam com sistemas de atendimento às vítimas que entram em ação assim que o problema ocorre. Por que um programa semelhante não existe no Brasil para lidar com esse tipo de tragédia? Por que esse programa não é elaborado para atender, pelo menos, às regiões onde o fenômeno ocorre com mais frequência?
150 MILHAS NÁUTICAS
No Brasil, por mais que as autoridades digam o contrário, esse problema não é levado a sério. Quer um exemplo? Apenas na quinta-feira passada, quatro dias depois da tragédia, os militares que chegaram a São Sebastião a bordo do A-140 Atlântico, o maior navio da Marinha do Brasil, desembarcaram e começaram a prestar serviços de apoio à população. Ótimo! A ajuda que a embarcação pode oferecer é inestimável. A bordo estão seis helicópteros, três embarcações de desembarque, máquinas e viaturas, além de médicos, enfermeiros e pessoal que pode atuar na busca de sobreviventes. A pergunta é: por que o Atlântico não zarpou tão logo se soube da dimensão da tragédia?
A culpa, naturalmente, não é do comandante da embarcação — e, sim, da falta de um protocolo que, nesta época do ano, deixe o navio abastecido, tripulado e preparado para zarpar a qualquer momento que sua ação se fizer necessária. Se esse protocolo existisse, a ajuda levada pela embarcação não teria demorado quatro dias, mas pouco mais de oito horas para chegar. Esse é, aproximadamente, o tempo que um navio como o Atlântico leva para percorrer as cerca de 150 milhas náuticas entre o porto do Rio, onde o navio está baseado, e o de São Sebastião.
Sem querer estabelecer qualquer tipo de comparação, no próprio domingo de Carnaval começaram a chegar à área atingida as cerca de 50 retroescavadeiras, pás carregadoras, caminhões caçamba e outras máquinas chuvas deste cedidas por empresas privadas a pedido do governo de São Paulo para ajudar na desobstrução das estradas e na remoção da lama que vinha dificultando o resgate das vítimas.
DESPREPARO
No caso específico das chuvas que caíram no litoral paulista no carnaval, o volume foi mesmo atípico e assustador. Durante cerca de 15 horas, foram registrados 683 milímetros de chuva — uma quantidade superior à verificada no município de São Sebastião durante todo o verão passado. Esse volume é mesmo suficiente para causar estragos monumentais em qualquer lugar que seja atingido por ela. Para se ter uma ideia do que isso representa, basta lembrar que a tragédia que tirou mais de 230 vidas em Petrópolis no ano passado se seguiu a um temporal de 260 milímetros (um volume superior à média mensal para fevereiro na cidade fluminense).
Não importa se a tragédia foi causada pelos 260 milímetros de Petrópolis ou pelos 683 de São Sebastião. O que precisa ser levado em conta é que tanto um caso quanto o outro expuseram despreparo do poder público brasileiro para, em primeiro lugar, lidar com situações de emergência. E para, em segundo lugar, agir de forma coordenada com o objetivo de evitar as ocupações irregulares de áreas sujeitas a risco e de remover dessas encostas, de forma digna e segura, as pessoas que, por falta de outra alternativa, construíram ali suas moradias.
Como já foi dito no dia 20 de fevereiro do ano passado, quando esta coluna falou sobre a tragédia de Petrópolis, a culpa não é da natureza. “Nem das famílias atingidas. O fato de ocuparem áreas consideradas de risco (...) não ameniza — mas, ao contrário, aumenta — a responsabilidade do Estado sobre segurança e as vidas das cidadãs e dos cidadãos que vivem nas regiões sujeitas a esse tipo de perigo”.
Esse é o ponto que interessa: como não é possível impedir que a chuva caia nem que a enxurrada corra morro abaixo, a solução deve prever a remoção dos moradores da área de risco. Isso precisa ser feito com cuidado, com critério e, sobretudo, com respeito às pessoas que vivem nesses locais.
ÁGUA E LUZ
O problema, sim, é complexo e precisa ser analisado com cuidado. O litoral norte de São Paulo, assim como o litoral sul fluminense, é uma região frequentada por turistas dispostos a gastar dinheiro durante as férias. Foi justamente isso que atraiu para a região pessoas em busca de trabalho. São pedreiros, trabalhadores em hotelarias, empregados do comércio, seguranças, pequenos empreendedores, caseiros, cozinheiros, garçons, vendedores ambulantes e outros profissionais que tiram seu sustento do turismo — numa roda que se movimenta dessa maneira em várias partes do mundo e que, se funcionar direito, é benéfica para todos.
De um modo geral, são essas pessoas que, por falta de recursos para se instalar nas áreas mais valorizadas próximas à praia, ocupam as encostas sujeiras a deslizamentos e correm mais risco de perder a vida quando o tempo fecha e o temporal desaba. É aí que fica clara a ausência e a omissão do poder público.
As residências construídas em áreas consideradas irregulares, que crescem à vista de qualquer fiscal, são abastecidas por eletricidade fornecidas por concessionárias de serviços público. O mesmo vale, em muitos casos, para os serviços de água e esgoto. Nenhuma autoridade, portanto, tem o direito de alegar a falta de mecanismos para monitorar a ocupação das áreas irregulares nem para tomar providências para impedir a construção de casas nas áreas sujeitas a deslizamentos.
Pessoas que vivem em localidades como Vila do Sahy — que registrou o maior número de vítimas na tragédia em São Sebastião — não estão ali porque gostam de pôr a própria vida ao perigo. Nada disso! Estão lá porque precisam ter acesso ao lugar de onde tiram seu sustento. Para que essas pessoas troquem as moradias atuais por outros mais seguras, basta investir em programas habitacionais que ofereçam, além de casas bem construídas, um sistema decente de transporte público (e não apenas lotações abarrotadas e sujas) que as levem para o trabalho. E as traga de volta em segurança. Que tenha bons serviços de saúde, educação, policiamento e saneamento. Um lugar onde, enfim, o Estado se faça presente para que o cidadão não se veja obrigado a se virar sozinho em busca da sobrevivência.