O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva é experiente, habilidoso e — para mencionar a regra do jogo de xadrez — sempre preferiu jogar com as pedras brancas. Ou seja: cabe a ele tomar as iniciativas em qualquer disputa e, mesmo nos momentos em que parece acuado por um ataque poderoso, parte para a ofensiva e encontra meios para virar a partida a seu favor. Num ambiente dominado pelas manobras ostensivas por espaço no futuro governo ameaçam abrir fissuras em sua ampla base de apoio, ele sempre consegue criar um fato que desvia o foco da discussão essencial para uma questão secundária, — e, assim, ganha tempo para resolver o problema conforme sua própria escala de prioridades.
O melhor exemplo dessa habilidade no atual momento de transição se deu na semana passada. Na noite de terça-feira, só para recordar, a Câmara aprovou a toque de caixa o projeto que flexibiliza a Lei das Estatais e permite o loteamento político de cargos que, a rigor, deveriam ser preenchidos por critérios exclusivamente técnicos. A nova norma, que também alcançou as agências reguladoras, era um sonho antigo do Centrão — que vinha falando dessa mudança, sem sucesso, desde os tempos do governo de Jair Bolsonaro.
A questão é que a mudança também era importante para Lula — que, mesmo sem assumir, regeu o apoio expressivo que seu partido, o PT, deu à mudança. Da forma como foi aprovada pela Câmara, a norma permite que Lula coloque pessoas de sua confiança, na direção ou em postos nos conselhos de algumas estatais estratégicas, como a Petrobras, o BNDES, a Caixa e o Banco do Brasil. A aprovação da lei criou um ambiente desfavorável para Lula, que, embora não seja, passou a ser apontado como único interessado em um critério de nomeações que sob as administrações petistas criou mais problemas do que soluções para as estatais e para o país.
A aprovação pela Câmara criou para o futuro governo um desconforto superior aos benefícios que geraria no primeiro momento. Tanto assim que, a despeito da disposição do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, de colocar a lei em votação no mesmo ritmo alucinado com que Arthur Lira, presidente da Câmara, a pôs para andar ainda na semana passada, houve um recuo e a definição da matéria ficou para depois. Talvez até para 2023. E o que fez Lula?
FRENTE AMPLA — Bem... enquanto aumentava o tom da gritaria contra ele, o presidente eleito desviou o rumo da conversa com um discurso que, a rigor, não tem qualquer consequência prática imediata além de contentar as alas mais radicais de seus apoiadores. Durante o evento no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em Brasília para marcar o encerramento dos trabalhos dos grupos temáticos que elaboraram as propostas para o novo governo, o presidente levou a plateia ao delírio ao dizer que “as privatizações no Brasil vão acabar” e que “vamos provar que algumas empresas públicas vão poder mostrar sua rentabilidade”. Foi uma maneira de mudar o rumo da conversa dando a impressão de que o assunto permanecia o mesmo.
Se um discurso com esse tom tivesse sido feito logo depois da vitória de 2022, quando o presidente ainda precisava da fantasia de “Lulinha Paz e Amor” para vencer a desconfiança do empresariado em relação a seu passado radical, teria sido um “Deus nos acuda!”. Nas circunstâncias atuais, não há problema algum ¬ em falar alto e ressuscitar o velho Zé Ferrabrás, o personagem irritadiço e sempre disposto a partir para a briga que ilustrava o material das campanhas de Lula à presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Lula sabe que, por enquanto, pode falar o que bem entender, desde que esteja disposto a abrir espaço para acomodar no novo governo a frente ampla de interesses que o elegeu.
PAIXÕES INFLAMADAS — Antes de prosseguir, há um ponto importante a ser esclarecido. Por que as palavras de Lula no CCBB têm um peso muito inferior ao barulho que se fez em torno delas? Muito simples. O próprio Lula reconheceu em seu discurso que a presença do Estado no setor produtivo é hoje uma fração mínima do que já foi no passado. Os últimos governos praticamente concluíram a transferência dos aeroportos para a iniciativa privada, avançaram com a transferência das empresas federais do setor elétrico e praticamente esvaziaram a cesta de companhias públicas que, no passado, incluía siderúrgicas, operadoras de telefonia e mineradoras.
Restam, sim, e como foi dito aqui na semana passada, ativos importantes para serem concedidos à iniciativa privada. São os casos do Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, e do Porto de Santos, no litoral paulista. Mas, embora muitos defendam que elas sejam vendidas já, a manutenção de seu controle nas mãos do Estado por mais algum tempo não significa por si só um problema tão grande assim. Em outras palavras, não há mal algum em esperar que a situação se acalme e que o pragmatismo se imponha — como sempre se impôs nos governos de Lula — para que esses processos de concessão sejam concluídos.
E a Petrobras? Bem, esse é um caso muito mais complexo do que os demais e nem mesmo nos governos de perfil privatista que já passaram pelo Palácio do Planalto (como foram os de Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e do próprio Jair Bolsonaro) houve consenso em relação ao tratamento que deveria ser dado a ela. (Em tempo: este colunista, particularmente, é favorável à privatização da Petrobras. Da mesma forma, ele sabe muito bem que o assunto desperta paixões inflamadas, que praticamente inviabilizam sua discussão num momento de transição como este!)
Quanto ao outro ponto que Lula tocou, ou seja, o de fazer as empresas públicas mostrarem rentabilidade, bem... a Petrobras, que torrou dinheiro a rodo e quase foi à falência nas mãos da petista Dilma Rousseff, recuperou a saúde financeira nos últimos seis anos e passou a dar lucros estratosféricos com base numa política de preços que, a bem da verdade, precisa ser revista em benefício do consumidor. Mas que, de maneira alguma, expõe a empresa a riscos. E até mesmo os Correios, que estavam em frangalhos poucos anos atrás, voltaram a dar lucros expressivos, de acordo com os últimos balanços.
LIGAÇÕES ORGÂNICAS — O resumo da ópera é o seguinte: o estoque de estatais que poderiam ser vendidas é pequeno demais para deixar o país numa situação difícil, como já deixou no passado. Por outro lado, ele é grande o suficiente para acomodar os aliados que reivindicam um lugar na máquina e, assim, serem recompensados pelo apoio que deram a Lula durante a eleição. Esse é o ponto. A Lei das Estatais, da forma como foi feita, era um instrumento que dava tranquilidade ao governo e o mantinha a salvo de pressões que pudessem envolve-lo em problemas maiores. Da forma como ficou depois da aprovação das mudanças da semana passada, ela criou uma situação que interessa mais aos políticos em busca de cargos do que ao próprio Lula.
O que está em questão, portanto, não é a indicação do economista e ex-deputado Aloísio Mercadante para a presidência do BNDES nem a possível ida do senador Jean Paul Prates para a Petrobras. São dois nomes que, a despeito de suas ligações orgânicas com o PT, têm conhecimento técnico ou capacidade de articulação suficientes para não desviar essas empresas de suas rotas. No caso de Mercante, há a possibilidade de que Lula o nomeie mesmo sem a alteração na lei e espere que a Justiça decida, já em 2023, se ele poderá ficar lá ou não. No caso de Prates, ele pode ser acomodado em um ministério importante — permitindo que Lula entregue o comando da estatal a um nome técnico e disposto seguir ao pé da letra a linha política que seu governo determinar. Será que é difícil encontrar alguém que se amolde a esse figurino? Com certeza, não. Seja como for, e acima de qualquer barulho, é bom não duvidar da habilidade de Lula em acomodar interesses e continuar conduzindo o processo da forma que lhe é mais conveniente.
Veja, por exemplo, o que aconteceu com o futuro Ministério da Fazenda. Assim que o nome do petista Fernando Haddad foi anunciado para assumir a pasta, as reações foram as piores possíveis. Muitos afirmaram até mesmo de que o desafio estava muitos degraus acima da capacidade do ex-prefeito de São Paulo dar conta do recado. Bastou, porém, que se anunciasse o nome de Gabriel Galípolo para o posto de secretário-executivo e de Bernard Appy para secretário especial para a Reforma Tributária para tudo se acalmar aponto de parecer que ninguém se preocupa mais com os rumos da Economia.
Galípolo é um homem de mercado. É conhecido pela capacidade de trabalho e, na campanha, foi um dos principais interlocutores de Lula junto aos agentes econômicos. Appy, por sua vez, é especialista num tema que todos consideram essencial no momento: a necessidade de uma reforma ampla que modernize e simplifique o sistema tributário nacional. O arranjo está feito. Se der certo, pontos para Lula. Se não der, a habilidade do presidente voltará a campo e ele ganhará um pouco mais do que mais necessita para fazer um governo à altura das expectativas que criou na sociedade: tempo e tranquilidade.
EM TEMPO: Desde que começou a ser publicada, no início de 2020, esta coluna esteve nas páginas de O DIA em todos os domingos. Em razão de férias merecidas, ela será interrompida por algumas semanas e voltará a ser publicada no dia 15 de janeiro de 2023. A todos os nossos leitores, desejamos um Feliz Natal e um Ano Novo com paz, saúde, trabalho e realizações. Em breve estaremos de volta!
(Siga os comentários de Nuno Vasconcellos no Twitter e no Instagram: @nuno_vccls)