Uma dúvida tem estado presente na cabeça de quem reflete sobre a criminalidade que tanto incomoda a população do Rio de Janeiro — mais especificamente da capital, da Baixada Fluminense e da região de Niterói. Ela é estimulada pelos indicadores que apontam a redução dos índices de violência no estado. Na semana passada, o Instituto de Segurança Pública divulgou uma estatística que mostra uma queda de 17% nos crimes de homicídios intencionais entre janeiro e maio deste ano, na comparação com os cinco primeiros meses de 2021. No mês de maio, a queda foi de 21% em relação a maio do ano passado. Outros índices, como o número de roubos de rua e de carga, também caíram.
A questão é: por que números como esses não são comemorados? Por que a população não respira aliviada ao tomar conhecimento deles? A resposta a essas questões exige cuidados. A despeito dos dados que indicam a redução da criminalidade no Rio, o cidadão continua se sentindo ameaçado. Por mais que as estatísticas mostrem melhoras, as pessoas — sobretudo as que vivem nas comunidades mais vulneráveis da Região Metropolitana — continuam saindo de casa para trabalhar sem saber se voltarão vivas no final do dia. Este é o debate que interessa.
Não há estatística favorável que resista à realidade com a qual nos deparamos ao abrir o jornal a cada manhã. Na semana passada, por exemplo, ficamos sabendo que uma mulher foi morta a tiros na noite de quarta-feira em frente a uma casa noturna de Nova Iguaçu. Na noite anterior, um tiroteio em Duque de Caxias feriu um passageiro e matou um dos suspeitos de cometer assaltos dentro de um ônibus da linha 018.
Na noite do sábado da semana passada, o segurança Jorge Luiz Antunes, de 48 anos, não resistiu aos tiros que levou dos bandidos que assaltaram uma joalheria num shopping center na Barra da Tijuca. Na última quarta-feira, o cabo da PM Vinícius Gomes da Silva, de 34 anos, foi abatido por um tiro na cabeça durante uma operação policial na Zona Norte de Niterói. São casos reais que, com todo respeito ao trabalho das autoridades, tiram da população qualquer estímulo de festejar a redução nos índices de criminalidade.
ESTATÍSTICA MACABRA
Cada um desses casos envolve uma vida que se perdeu em meio à guerra não assumida que se trava no Rio e que já foi discutida neste espaço em outras oportunidades. Mais cedo do que se espera, porém, esses casos serão substituídos por outros e se verão reduzidos a números da estatística macabra que cerca a segurança pública em nosso estado. O carioca e o fluminense não querem números, mas uma solução definitiva para o problema da violência. Essa realidade, porém, se mostra cada vez mais distante e que já não causa a comoção que deveria. O crime entre nós, mais infelizmente ainda, se transformou em algo corriqueiro e banal.
Admitir a banalidade do crime é uma dessas verdades que, por incômodas que sejam, precisam ser ditas. Há outras. Precisamos com urgência abandonar a hipocrisia e deixar de tratar a violência e a criminalidade como problemas sociais. Precisamos olhar para elas como o que de fato são: resultado de desvios de conduta inaceitáveis que devem ser punidos por uma legislação penal muito mais rigorosa do que a que temos.
Quanto mais demorarmos a encarar esses pontos delicados mais nos deixaremos nos envolver pelo debate estéril que cerca a Segurança Pública no Rio. Precisamos, com urgência, deixar de considerar os policiais culpados por qualquer morte que ocorra durante as operações e de tratar os bandidos como vítimas de um Estado opressor. Precisamos acabar com a hipocrisia que nos leva a passar a mão na cabeça de quem comete sai da linha e de tratar a ferro e fogo qualquer autoridade que se oponha a essas pessoas. Isso é fundamental.
Outra providência urgente é deixar de tratar essa questão com argumentos que servem apenas para nos afastar da solução do problema. Dizer que toda a criminalidade é consequência das condições de vida miseráveis nas regiões mais vulneráveis do Rio é uma falácia! A pobreza, por se só, não leva ninguém a cometer crimes violentos. Pelo contrário. A maioria esmagadora da população de qualquer comunidade dos morros cariocas, da Baixada Fluminense ou do entorno de Niterói é composta por gente honesta, e, mais do que isso, ansiosa por condições de vida mais dignas do que as atuais.
Essas pessoas estão cansadas de ser usadas como desculpa para as ações das quadrilhas do crime organizado E, mais do que isso, de servirem de escudos humanos para os criminosos que, diante da ausência ou da omissão do Estado, se sentiram livres para se armar de fuzis e ocupar essas regiões pela força.
JOGO DURO
Antes de seguir adiante, convém definir limites para esse debate. Ninguém está defendendo, aqui, o uso desnecessário de força por parte de a polícia nem está dizendo que a autoridade tem o direito de sair por aí atirando primeiro e perguntando depois. Também não é possível fechar os olhos para a situação econômica que reduziu as oportunidades e levou uma série de jovens — diante da falta de empregos e de uma educação de qualidade — a encarar o crime como uma oportunidade de sobrevivência. Negar essa realidade é pior do que tapar o sol com a peneira.
Daí, porém, encarar a desigualdade social como única a causa da criminalidade é, no final das contas, confundir o sintoma com a causa da doença. Já passou da hora — até mesmo em defesa da população mais vulnerável, que é a que mais sofre com a criminalidade — de pararmos de pensar assim. É preciso estimular os investimentos capazes de oferecer empregos de qualidade e de segurar no Rio empresas que vão embora justamente por se sentirem ameaçadas pelo quadro deplorável da segurança pública. É preciso, em resumo, cuidar do futuro — o que inclui por em prática medidas rigorosas de combate ao crime.
Não se trata, é bom insistir, de dar à polícia o direito de agir com violência e de tratar os criminosos com a mesma falta de limites que a volante do sargento João Bezerra usou para eliminar e decapitar os cangaceiros de Lampião, em 1938, no sertão de Sergipe. A barbárie é inadmissível, independente de quem a pratique. O que se defende é que, como já se viu em outros lugares do mundo, é a necessidade de endurecer a legislação e excluir do nosso Código Penal os dispositivos que cobrem os criminosos com os direitos que eles negam a suas vítimas.
Já passou da hora de adotarmos uma política de tolerância zero em relação aos pequenos e aos grandes delitos. Já passou, também, da hora de reduzirmos a maioridade penal para 16 anos a fim de que adolescentes deixem de ser usados para acobertar os crimes de criminosos experientes. Já passou da hora, finalmente, de acharmos que estamos contribuindo para a evolução da sociedade ao tratar como vítimas aqueles que cometem violência contra essa mesma sociedade.
Não há nada de cruel ou de desumano nessa ideia. Não se trata de tirar dos acusados de cometer crimes o direito à ampla defesa e a um julgamento justo que, no final das contas, pode provar sua inocência. Esse direito é e deve ser sagrado em qualquer democracia. O que se propõe é eliminar da legislação os mecanismos que permitem ao criminoso preso em flagrante delito depois de um assalto, sair da Delegacia de Polícia livre, leve e solto antes mesmo das autoridades terminarem de tomar o depoimento da vítima que sofreu a violência.
O que acontece no Brasil, no entanto, é uma inversão de valores, em que os bandidos parecem gozar de todo tipo de imunidade e se sentem livres para continuar cometendo seus delitos logo depois de liberados pela polícia. Suas vítimas, no entanto, se veem constantemente ameaçadas e privadas do direito de sair de casa para trabalhar, para visitar um parente ou para se divertir.
A MÃO DA LEI
Embora não sirva de consolo, vale registrar que essa realidade não é apenas no Rio. Dados do Conselho Nacional de Justiça divulgados na semana passada mostram que existem no país um total de 355 mil mandados de prisão em aberto. Desses, 130 mil foram expedidos na Região Sudeste. O número, por maior que seja, ainda não reflete toda a impunidade. Esses mandados referem-se apenas a casos investigados. Alguns já foram até julgados. As estatísticas mais recentes mostram que, no Brasil, pouco mais de três em cada dez homicídios geram alguma investigação. Na maioria dos casos, portanto, o criminoso não é sequer identificado.
Ou seja, existe no Brasil um número enorme de pessoas que deveriam pagar por seus delitos, mas que estão por aí, fora do alcance da lei e na mais completa liberdade. Não é preciso ser psicólogo nem especialista em comportamento humano para saber que dados como esses criam uma situação que estimula o criminoso a agir com a certeza de que jamais será alcançado pela mão da lei.
A situação é grave e quanto mais tempo demorar para ser tratada como se deve mais grave ainda se tornará. Todos sabemos que a criminalidade no Rio de Janeiro é alimentada por organizações poderosas e muito bem organizadas, que funcionam e são administradas como empresas. Isso não se refere apenas às quadrilhas que vendem drogas, roubam cargas ou aplicam os golpes mais rumorosos. A situação chegou a um ponto tão grave que até os crimes de aparência mais corriqueira, como o furto de um telefone celular ou um assalto a uma joalheria, podem ser apenas a parte aparente de uma engrenagem muito mais sofisticada e profunda.
O crime é um negócio. E, como todo negócio, se guia pelas mesmas variáveis que orientam as ações de qualquer empresário. Essas variáveis são o investimento necessário, o risco que a operação oferece e o retorno que ela pode gerar. Se o risco é grande a ponto de comprometer o retorno e não remunerar o investimento, o negócio simplesmente não é feito. Se, ao contrário, o risco é baixo, capaz de cobrir o investimento e gerar um retorno compensador, o empreendimento segue adiante e prospera. Simples assim.
Quanto menos risco envolver a atividade criminosa, mais estímulo haverá para que ela seja cometida. Por outro lado, quando maior for o risco a que os criminosos estiverem expostos, menor será sua tendência a assaltar, roubar, traficar, ameaçar, extorquir e assassinar inocentes. Combater a impunidade é o primeiro passo para acabar com o crime.
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