Nuno Vasconcelos
Daniel Castro Branco/Agência O Dia
Nuno Vasconcelos

O desastre não aconteceu no Rio de Janeiro , é verdade. Mesmo assim, e pela semelhança com fatos que sempre ocorrem por aqui, ele diz respeito a todo os cidadãos cariocas e fluminenses. O deslizamento que destruiu o Solar Baeta Neves, um casarão erguido no final do Século 19 na histórica Ouro Preto, em Minas Gerais, é um bom exemplo do que acontece quando os cuidados óbvios não são tomados a tempo de se prevenir os efeitos da temporada de chuva.

Na quinta-feira passada, a encosta do Morro da Forca deslizou e jogou ao chão o casarão centenário que havia sido restaurado há cerca de dois anos. Felizmente, o Solar Baeta Neves e a construção vizinha, que também foi destruída na quinta-feira, estavam vazios e ninguém morreu soterrado. Isso nos permite, depois de lamentar o dano sofrido pelo patrimônio histórico, olhar com mais frieza para o desastre, analisá-lo por suas consequências materiais e, mais do que isso, verificar o que poderia ter sido feito para evitá-lo.

A primeira lição a ser tirada do episódio é que a fiscalização, que muita gente enxerga como a solução para todo e qualquer mal relacionado com a negligência e com a falta de prevenção, nada resolve quando não vem acompanhada por iniciativas capazes de sanar os problemas detectados. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o órgão encarregado pela “proteção” ao imóvel, sabia do risco e, junto com autoridades mineiras, vinha monitorando o Morro da Forca para medir os riscos do acidente.

Houve visitas ao local até os dias anteriores ao deslizamento e, certamente, vários relatórios foram feitos com alertas para os riscos de desastre. Moral da história: providências desse tipo, assim como as multas que os órgãos de fiscalização costumam aplicar em casos de descumprimento das normas de segurança ambiental (e que na maioria das vezes são perdoadas depois que o problema deixa de atrair atenção), podem até aliviar a responsabilidade das autoridades diretamente ligadas ao problema. Mas estão longe de ser uma solução.

De acordo com os registros do próprio Iphan, o primeiro alerta para os riscos de deslizamento do Morro da Forca foi dado durante as chuvas torrenciais de 1979 — cerca de um ano antes de Ouro Preto ter sido reconhecida pela ONU como Patrimônio Cultural da Humanidade. Nos 43 anos que se passaram entre o primeiro alerta e o deslizamento da semana passada, houve tempo e dinheiro de sobra para que se evitasse o desastre.

Poderiam ter sido feitas, por exemplo, obras de contenção capazes de proteger, em ordem de importância, as vidas dos moradores, o patrimônio histórico e, além disso, a pavimentação das ruas, os sistemas de iluminação, de água e de esgoto. Este é um outro ponto. Tudo isso, além de ser fundamental para o bem estar da população, foi construído com verbas oficiais, ou seja, com dinheiro do povo. Cuidar bem do que é público é, no mínimo, um ato de respeito ao cidadão que pagou impostos.

MUDANÇA CULTURAL — Nada do que se diga é suficiente para eliminar uma verdade que vale para Ouro Preto, mas também vale para a Região Serrana do Rio, para Niterói, para São Gonçalo, para a capital e para uma série de pontos do estado, que também estão sujeitos a acidentes dessa natureza. Todo ano, o barulho das trovoadas de novembro parece acordar as autoridades para a necessidade de correr e tomar providências urgentes antes da chegada das chuvas.

A pergunta é: o que foi feito entre os meses de abril e outubro — depois que as águas de março fecharam o verão anterior e a estação seca teve início? O que tem sido feito nos meses em que normalmente não chove, para prevenir os danos e proteger a vida das pessoas que vivem em áreas de riscos?

Estamos falando, aqui, de algo muito maior do que tomar providências para se evitar as consequências mais drásticas da chuva. Estamos falando, na verdade, da necessidade de uma mudança cultural que possibilite que nos antecipemos aos momentos críticos para evitar que haja, por exemplo, sobrecarga no sistema de Saúde pública, como se viu no momento mais crítico da pandemia.

Estamos falando da necessidade de medidas preventivas que protejam a vida do cidadão nas áreas mais vulneráveis ao crime organizado. Estamos falando da criação de um modelo de Educação que, mais do que alfabetizar e ensinar as quatro operações (o que já seria um avanço em relação à realidade atual), forme cidadãos capazes de responder aos desafios de uma sociedade que passa por mudanças profundas.

O DIFÍCIL E O IMPOSSÍVEL — Como dizia John Lennon na letra da Imagine, “você pode dizer que sou um sonhador” por considerar tudo isso possível. Talvez. A questão é que, para se chegar a uma sociedade melhor do essa que construímos até aqui, precisamos dar o primeiro passo. Precisamos mudar nossa atitude. Ao invés de esperar que o desastre aconteça para chorar os mortos e ouvir as autoridades prometerem “providências enérgicas” para apurar responsabilidades e punir os culpados, que tal passarmos a apostar na prevenção?

No caso das chuvas, ninguém pode alegar surpresa diante delas! Desde as primeiras cartas que escreveu em 1554 a Santo Inácio de Loyola, seu superior na Companhia de Jesus, o padre José de Anchieta descreveu os temporais que presenciou em diversos pontos do litoral brasileiro e da Serra do Mar. Ou seja, se há algo que todos sabemos desde os primórdios da colonização é que as chuvas de verão sempre chegam e, muitas vezes, destroem tudo o que encontram pela frente. Esse é o primeiro ponto.

Outro ponto é que a urbanização das grandes cidades, a começar pelo Rio, se deu de forma desordenada e expôs à população que necessitava conciliar o local de moradia com o local de trabalho situações de risco provocadas pelos elementos mais evidentes da natureza: a topografia, o índice pluviométrico e as construções improvisadas. O que fazer?

A pior solução possível é remover as pessoas das áreas de riscos e não dar a elas condições de moradia que levem em conta seu direito ao trabalho e à moradia segura. Há, antes disso, várias obras que podem ser feitas para se prevenir os desastres em regiões acidentadas. Tomemos outro exemplo de fora do Rio: quem sai da cidade de São Paulo e desce a Rodovia dos Imigrantes em direção à baixada Santista pode notar, assim que se inicia a descida da Serra do Mar, uma série de pontos de captação da água pluvial.

Eles estão ali para conter as enxurradas, apressar o escoamento e evitar que o terreno fique encharcado e deslize na estação das chuvas. Mais do que proteger a natureza e impedir os deslizamentos, o sistema ajuda a proteger a vida dos viajantes e a própria estrada por onde eles trafegam.

Por que não se fazer algo parecido nas regiões ameaçadas do Rio e, mais do que isso, por que não dar início a um programa que pouco a pouco possibilite que a população deixe as áreas de risco e passe a contar com moradias dignas em locais mais seguros? Isso seria, talvez, o primeiro passo em direção a um novo conceito de cidadania. É difícil? Sim, é difícil. Mas como dizia David Ben-Gurion, um dos fundadores e o primeiro chefe do governo do Estado de Israel: “O difícil a gente faz agora; o impossível pode esperar um pouco mais”.

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