O ano de 2020 chegou ao fim e, com ele, se foi um dispositivo que, mesmo tendo sido criado para fazer frente a uma emergência, teve uma repercussão muito mais positiva do que se esperava quando foi proposto. O auxílio aos trabalhadores informais e a outros brasileiros vulneráveis que ficaram sem renda durante a pandemia do coronavírus permitiu a sobrevivência de milhões de famílias. Ele significou mais do que a tábua de salvação. Pode-se dizer que foi a boia que impediu o naufrágio do país inteiro.
Não é difícil imaginar o que teria acontecido no Rio de Janeiro, onde a economia já sentia os efeitos dos desacertos políticos muito antes da pandemia, se esse dinheiro não tivesse chegado ao bolso do trabalhador... Concedido a um total de 67 milhões de brasileiros (cerca de um terço da população do país), o auxílio de R$ 600 começou a ser pago em abril e deveria durar até junho, mas foi estendido até agosto. Em setembro, o auxílio foi reduzido para R$ 300, com previsão para durar até dezembro.
Por mais essencial que tenha sido, acabou. No último dia 29 (terça-feira da semana passada), a Caixa liberou a última parcela prevista. Agora, para o benefício se estender pelo ano de 2021, será necessário uma nova Medida Provisória. Resta saber, caso o governo decida editá-la, se o Tesouro Nacional terá meios para pagar a conta. Ou, em outras palavras, se o país, que sofre um desequilíbrio fiscal crônico, terá forças para suportar mais essa despesa obrigatória.
ONDE ESTÁ O DINHEIRO?
Essa é, sem dúvida, uma questão delicada e precisa ser discutida sem paixões. Nenhum brasileiro em sã consciência pode pôr em dúvida o efeito positivo do auxílio emergencial que foi dado. Foi uma medida que ajudou a salvar vidas, isso é líquido e certo. Ninguém pode negar, da mesma forma, que, sem esse dinheiro, a economia estaria numa situação ainda mais difícil do que está. Os recursos do auxílio, que superaram a casa dos R$ 292 bilhões, impediram a queda exagerada do consumo e, em muitos casos, ajudaram a manter em funcionamento empresas que tinham tudo para fechar as portas com a pandemia. Ou seja: ao socorrer os que não tinham renda, ajudou a manter a renda de quem ainda tinha emprego.
A pergunta óbvia é: se os efeitos foram tão benéficos, por que não buscar meios de tornar a ajuda definitiva? A resposta, mais óbvia ainda, é: simplesmente porque o país não suportaria essa sobrecarga fiscal. Mais apertada do que a de 2020, a proposta de orçamento do governo para 2021, que prevê gastos de 1,485 trilhão, não reservou recursos para essa despesa.
Seria ótimo que tivesse previsto e, mais do que isso, que o país dispusesse de recursos suficientes para adotar uma política de bem-estar capaz de garantir a qualquer cidadão condições dignas de sobrevivência, acima da linha da pobreza. Como não tem, a questão é: de onde tirar dinheiro para pagar a conta?
Neve no Rio
Uma discussão como essa num país com as caraterísticas fiscais do Brasil, para ser levada a sério, deve se iniciar por reconhecer a necessidade de se redefinir a prioridade dos gastos. Embora alguns políticos pareçam não se dar conta disso, o dinheiro público não nasce em árvores. Ele vem da emissão de dívida pública e, principalmente, dos impostos recolhidos das pessoas físicas e jurídicas — que arcam com uma carga tributária elevadíssima em troca do muito pouco, quase nada, que recebem do governo na forma de serviços.
Mesmo com todas as dificuldades que o país atravessa, impostos continuam sendo pagos e o dinheiro continua caindo nos caixas federal, estaduais e municipais. Só que, ao entrar ali, fica comprometido com “despesas obrigatórias” que consomem praticamente tudo o que se arrecada.
A maior parte dessas despesas, como se sabe, são os salários dos funcionários ativos e inativos, que aumentam todo ano com a precisão de um relógio suíço simplesmente porque a lei diz que elas devem aumentar.
Conseguir que o funcionalismo público, sobretudo das categorias mais privilegiadas e bem pagas, aceite abrir mão de parte de seus privilégios, que pesam sobre os ombros de todos os brasileiros, para ver se sobra dinheiro para o auxílio emergencial é mais difícil do que ver nevar no Rio
de Janeiro. Atenção! Ninguém está dizendo, aqui, que o servidor não tenha que ser pago em dia nem que não mereça reajustes que mantenham
o poder de compra de seu salário. A questão é outra.
O Brasil não teria nada a perder se adotasse um mecanismo, que por sinal já existe em outros países, que acabasse com os reajustes automáticos dos salários dos servidores e limitasse todo e qualquer reajuste de gastos públicos à capacidade de pagamento do Estado. E, como complemento, um outro que possibilitasse a adequação do quadro e dos vencimentos dos servidores ao volume da arrecadação. Aí está uma parte do problema: por definição constitucional, apenas juízes têm direito à irredutibilidade de vencimentos.
Com o passar do tempo, porém, o princípio foi estendido a todo e qualquer servidor público — e quem paga por tanta generosidade é o contribuinte.
Mais uma vez, é bom esclarecer que não se está dizendo, aqui, que a redução dos salários e a dispensa de servidores deva ser o primeiro recurso utilizado quando o governo (seja ele federal, estadual ou municipal) se ver em dificuldades financeiras. Pelo contrário: esse recurso deve ser uma medida extrema e utilizado apenas em situações graves como a atual, em que sempre existe o risco de, em nome da preservação dos direitos dos servidores, levar o país a um quadro de exaustão fiscal que leve todos à lona. Exaustão que seria pior para todos, inclusive para os que hoje estão na frente da fila do dinheiro.
Seria necessário aproveitar este início de ano, em que os ânimos ainda estão contagiados pelo espírito do Natal e do Réveillon, para dar início a uma discussão séria sobre a realidade fiscal brasileira. E, também, sobre os custos de se manter uma situação de privilégios para poucos num país onde um terço das pessoas poderia ter enfrentado problemas mais sérios do que enfrentou se não contasse com a ajuda emergencial.
Feliz Ano Novo.