Faltam 85 dias para o início do verão . A julgar pelo que se viu na semana passada, as inundações que vêm com as chuvas , mais frequentes nessa estação do ano, novamente causarão transtornos e, uma vez mais, testarão o limite da paciência do carioca. As chuvas que caíram na última terça-feira, como já se tornou rotina na cidade, alagaram ruas, interromperam o trânsito e reproduziram as cenas que se repetem temporal após temporal .
As imagens das pessoas em situação de dificuldade por causa das chuvas parecem cópias do que se viu na inundação anterior — mas o pior é que as justificativas das autoridades também parecem as mesmas. Entre as desculpas dadas pelo poder público para fugir de sua responsabilidade pelo problema, uma das mais insistentes e irritantes é a da surpresa diante de uma tempestade que caiu quando não era esperada.
Desta vez, a informação é a de que a chuva de 248 milímetros que caiu entre a terça-feira e na quarta-feira, foi superior aos 148 milímetros previstos para todo o mês de setembro . A surpresa talvez se justifique em outras cidades do país, mas no Rio , não. Independentemente de quando o temporal desabe ou da quantidade de água que despenque do céu, a cidade tem a obrigação de estar sempre pronta para recebê-la.
Não se trata de implicância nem de má vontade com as autoridades. Desde que Estácio de Sá desembarcou na Baía de Guanabara e fundou a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1565, há registros das chuvas torrenciais que provocam inundações e causam estragos. Não há, portanto, qualquer razão que justifique surpresa diante de um fenômeno natural que tem impacto sobre a vida da cidade há 455 anos. Ou seja, tempo para resolver o problema, houve. O que faltou foi única e simplesmente vontade de encarar a situação com seriedade. Isso é uma verdade histórica.
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“Obra enterrada”
Também é verdade, no entanto, que nunca existiu até aqui um modelo legal capaz de estimular os investimentos em sistemas de escoamento e drenagem eficientes e capazes de impedir os transtornos causados pelas enchentes nos grandes centros urbanos. Em entrevista ao Portal iG , em parceria com a Rede O DIA, na terça-feira passada, o secretário nacional de Saneamento, Pedro Maranhão, lembrou uma frase que, no passado, era uma espécie de mantra dos políticos: “Obra enterrada não dá voto”. Talvez esteja aí o motivo para que a legislação brasileira, até aqui, tratasse como substâncias diferentes a água que cai do céu e a água que brota do lençol freático para matar a sede e garantir a higiene na população.
A molécula de uma e de outra é formada por dois átomos de hidrogênio combinados com um de oxigênio, mas para a burocracia brasileira isso parecia não ter importância. Agora, tem. A partir do novo Marco Regulatório do Saneamento , sancionado em julho passado pelo presidente Jair Bolsonaro, o sistema de escoamento e o destino das águas da chuva (que é, até aqui, de responsabilidade da prefeitura), passa a ser regulamentado pelo mesmo órgão, a Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA), que cuida da captação de água para consumo humano (que, no Rio de Janeiro é de responsabilidade da incompetente Cedae ). Outro ponto importante: pela nova lei, as concessionárias de saneamento também poderão atuar na coleta do lixo urbano que, hoje, é o grande responsável pelo entupimento dos bueiros e galerias pluviais .
Bueiros e galerias
A mudança pode parecer incapaz de gerar benefícios. Na prática, porém, a mudança pode ser considerável. Todos se lembram, por exemplo, do que aconteceu no verão passado, quando a água fornecida pela Cedae trouxe para dentro das residências um odor insuportável de esgoto . Na época, a estatal tentou jogar sobre o município culpa pelo problema. Começou, então, uma troca de acusações entre a estatal e a prefeitura em torno da responsabilidade sobre a limpeza das galerias e do efeito da falta de manutenção sobre a qualidade da água. No final das contas, o único prejudicado foi o carioca, que precisou recorrer à água mineral para matar a sede.
O novo Marco Regulatório abre a possibilidade de uma mesma empresa cuidar de tudo o que diga respeito a água e determina que seja dada uma solução para retenção e uso da água das chuvas. Por esse sistema, assim que for concluída a regulamentação por parte da ANA, a água retida nos piscinões abertos para evitar enchentes poderá, depois de passar pelo devido tratamento, ser usada para irrigar praças e jardins, lavar as ruas e calçadas e ter outros destinos não relacionados com o consumo.
Ou seja, o que hoje é um transtorno se tornará um produto com valor comercial, e isso estimulará a empresa que se vier a se tornar dona da Cedae a investir num sistema que livre o carioca dos transtornos causados pelas chuvas . Tomara que isso aconteça logo porque o carioca, com toda sinceridade, já não suporta mais conviver com os mesmos problemas nem ouvir as mesmas desculpas de sempre.
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