O artigo publicado por Pedro Doria, n'O Globo, de 3 de março de 2023, intitulado “Rui”, me relembrou do meu caso pessoal em relação à nossa História do século XIX. Por volta dos 40 anos de idade, levei os três volumes de Heitor Lyra, “História de D. Pedro II – Ascensão, Fastígio e Declínio”, para ler nas férias. Foi então que me dei conta que nossa história estava mal contada. Apesar de historiador, parece que Pedro Doria sofre do mesmo tipo de desinformação que a narrativa republicana me omitiu ao desfigurar ou contar pela metade os fatos.
O resumo em negrito do artigo dele afirma o seguinte: “Rui Barbosa vale muito mais que um Caxias, mais que Tiradentes. Não tem para Pedro I ou Getúlio Vargas". A única personalidade das listadas que valeriam bem menos que Rui Barbosa, com que concordo plenamente, é a de Getúlio Vargas, cuja longa sombra nos persegue até hoje por ver no Estado o grande propulsor de desenvolvimento. E talvez Tiradentes. Vejamos cada um deles.
Tomemos o grande Caxias. Ele foi uma personalidade histórica que nos garantiu a unidade territorial ao dar combate às revoltas regionais onde havia forte presença de figuras com vocação para caudilhos. O caso, por exemplo, da Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul, foi mais que sintomático. Uma das grandes virtudes de Caxias, além de exímio planejador estratégico, como demonstrou na Guerra do Paraguai com a Dezembrada, é que jamais tripudiou sobre os vencidos. E nunca cedeu ao golpismo, que virou moda desde 1889.
O caso de Tiradentes tem semelhança com o de Rui no sentido de ter sido mal sucedido. Pouco se fala sobre o lado regionalista da Inconfidência mineira. Menos que a independência do Brasil, o que estava no radar era a de Minas Gerais. Se exitosa, a unidade territorial teria deixado de existir. E, provavelmente, teria parido outras repúblicas sem compromisso com a res publica . Ao saber do golpe militar de 1889, o presidente venezuelano acertou na mosca: “Pronto, lá se foi a única república, de fato, da América Latina”.
Quanto a Pedro I, não poderia discordar mais de Pedro Doria. Só se fala de seu lado temperamental. O fato de ler duas horas por dia é omitido. Estava bem informado para atingir seus propósitos. Na nossa Carta outorgada de 1824, o Parlamento passou a ter poder de veto efetivo sobre gastos e endividamento. Não estava brincando. É fácil ser democrata criado numa tradição democrática. Mais mérito tem quem veio de uma tradição absolutista e fez uma opção pela limitação do poder real a ponto de ir lutar e vencer seu irmão absolutista. A nossa (65 anos) e a carta portuguesa de 1826 (72 anos) foram as que mais duraram em ambos os países.
Por fim, Doria nos diz que “Rui perdeu para os oligarcas e para os militares”, sem se dar conta de que o poder moderador controlava os desmandos do andar de cima, a oligarquia, e que os orçamentos militares eram controlados pelos civis, normalmente ministros da Marinha e do Exército. Rui acabou derrubando estes dois pilares ao participar do golpe republicano de 1889. Depois, em Paris, acabou pedindo desculpas a D. Pedro II.