Afirmar que o presidente Jair Bolsonaro é inábil em suas declarações e cria crises onde elas não existem é, para não fugir do lugar-comum, chover no molhado. Bolsonaro parece não conter o impulso de manter a língua quieta na boca e sempre que se vê diante de um microfone diz o que não deve para, depois, correr atrás do prejuízo e por a culpa em quem divulgou suas palavras. Tem sido assim desde o dia 1º de janeiro e será assim enquanto ele estiver instalado no principal gabinete do Palácio do Planalto .

Manifestações contra Doria na avenida Paulista: pedido de impeachment com base em argumentos tão frágeis quanto os dos que querem a saída de Bolsonaro
Ricardo Galuppo/Arquivo pessoal
Manifestações contra Doria na avenida Paulista: pedido de impeachment com base em argumentos tão frágeis quanto os dos que querem a saída de Bolsonaro

Dito isso, é preciso perceber que as palavras descuidadas do presidente a respeito da pandemia do coronavírus podem se tornar as inimigas nº 1 de seus planos para o futuro. O mesmo estilo desabrido que o levou à Presidência da República pode dificultar sua volta para lá dentro de dois anos e meio ou, numa hipótese que até aqui é improvável, afastá-lo de lá antes da hora. Ainda não há clima para impeachment. Mas cada impropriedade dita pelo presidente traz essa possibilidade um pouco mais para perto dele. Seja como for, a campanha de 2022 já começou.

MUNIÇÃO AO INIMIGO

Quem reparar direito verá que os danos que as palavras de Bolsonaro causam à sua própria imagem vão muito além do que costumavam ir nos momentos iniciais do governo. Para ele, embora insista em ir por esse caminho, já não adianta se queixar de que suas palavras foram tiradas do contexto e que ele não quis dizer aquilo que foi publicado “ na mídia ”. Seu estilo sempre desafiador faz com que ele seja sempre questionado não pela intenção que teve, mas pela que parece ter tido — o que, para usar mais um lugar-comum, significa “dar munição ao inimigo”.

O que o presidente faz, com esse tipo de atitude, em suma, é dar conforto aos adversários com quem digladia a respeito de qualquer assunto — inclusive do isolamento social e da necessidade da volta imediata ao trabalho que estão entre os principais temas do momento. Essa discussão, é bom que se diga, não é uma exclusividade brasileira. Ela vem sendo travada no mundo inteiro e divide opiniões entre grupos que apresentam argumentos técnicos e estatísticas que sustentam seus pontos de vista sobre um ponto ou outro. No Brasil, porém, Bolsonaro expõe o que pensa a respeito do assunto ao mesmo tempo em oferece aos adversários, numa bandeja de prata, o argumento que se voltará contra ele.

“E DAÍ?”

Na tarde de terça-feira, por exemplo, Bolsonaro soltou uma frase infeliz, que grudará em sua imagem assim como a expressão desastrosa “estupra, mas não mata” tornou-se indissociável de seu autor, o ex-deputado Paulo Maluf . O fato aconteceu na chegada ao Palácio da Alvorada, o presidente parou para conversar com os jornalistas e foi perguntado sobre o aumento de mortes causadas pelo coronavírus no Brasil, que naquele dia ultrapassou o número de 5.300.

Falar de mortes é difícil e o mínimo que qualquer pessoa precisa demonstrar diante de uma estatística trágica como essa é consternação. Não foi o que fez o presidente. Fiel a seu estilo de considerar qualquer pergunta mais difícil como uma ofensa pessoal, Bolsonaro se saiu com esta: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o que?   Eu sou Messias mas não faço milagres ”, disse ao presidente. Pior do que dizer foi falar isso diante das câmeras e dos microfones que, como recomenda a boa prática jornalística, estão sempre abertos a cada vez que o Presidente da República se manifesta.

A discussão, naquele exato momento, desviou-se da necessidade do fim do isolamento social (que Bolsonaro defende para já e os governadores preferem que seja feita de forma gradual, a partir de 10 de maio — que é o Dia das Mães, uma das datas mais importantes para o comércio). No sábado e no domingo passados, houve pelo país inteiro manifestações com pedidos de fim imediato de volta imediata à atividade. Na maior delas, em São Paulo, um carro de som e dezenas de automóveis levaram cerca de 200 pessoas, se tanto, à avenida Paulista.

DISCUSSÃO SÉRIA

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Trata-se de um número diminuto se comparado à quantidade de pessoas que, em circunstâncias normais, costumam se manifestar no coração da maior cidade do país. Mas diante da excepcionalidade de uma situação onde a maioria tem evitado sair às ruas por receio de contrair o vírus, ele é mais do que expressivo. E comprova que é necessário, sim, promover uma discussão mais séria sobre o reabertura imediata das lojas e dos escritórios que ainda estão fechados. Mais do que isso, os manifestantes que foram à Paulista se apegaram ao tema do fim do isolamento para defender o presidente de seus críticos mais frequentes — sobretudo, o governador de São Paulo João Doria .

Nas manifestações do final de semana, em São Paulo, cada viva a Bolsonaro era seguido por um grito de “ fora, Doria !”. Até o impeachment do governador foi pedido com base em argumentos tão inconsistentes quanto os dos que querem a saída de Bolsonaro. Houve manifestações em outras cidades do Brasil e em todas elas, o nome do governador de São Paulo como um inimigo da economia foi mencionado.

IMPRENSA MENTIROSA

O fato ganhou destaque nos jornais e nas emissoras de TV e teria permanecido lá se o próprio Bolsonaro não tivesse reagido à pergunta sobre o aumento do número de mortes (que é o principal argumento dos que não querem a volta às atividades) com a frase infeliz. Na manhã da quarta-feira, dia 29, e depois que suas palavras já tinham se espalhado com mais rapidez do que a da própria pandemia, o presidente se cercou de alguns deputados que lhe são fiéis e, mais uma vez, parou na saída do Alvorada . E, também  mais uma vez, acusou imprensa de “mentirosa”.

Bolsonaro, então, quis atribuir as mortes a Doria — que seria o responsável por lidar com o problema no estado de maior população que é também o mais afetado da pandemia. Poucas horas  tempo depois, Doria abriu a entrevista coletiva que concedido por volta do meio dia com palavras duras dirigidas ao presidente. E pediu que Bolsonaro “respeite o luto de mais de cinco mil famílias que perderam seus entes queridos, que hoje estão sepultados”.

O bate-boca entre Bolsonaro e Doria não faz o menor sentido fora do contexto de uma disputa eleitoral que ainda está longe de acontecer. Ambos estão certos quando mencionam o efeito devastados da pandemia. Na mesma medida, ambos também erram ao tentar debitar na conta do outro a responsabilidade por uma tagédia que afeta o país inteiro. Embora isso possa acabar custando caro aos dois, tudo indica que essa troca de acusações se estenderá, naquilo que depender do script que ambos traçaram para suas carreiras, no final de outubro de 2022. Isso, naturalmente, se o eleitor até lá não se cansar de uma campanha tão antecipada e escolher um nome que até aqui não entrou na raia.

LEI DA GRAVIDADE

No que diz respeito ao presidente, existe, sim, uma evidente predisposição de alguns órgãos de imprensa em falar mal de Bolsonaro, esteja ele certo ou errado. Já foi dito neste espaço que, se o presidente mencionar a lei da gravidade em algum pronunciamento, logo surgirá um “especialista” para explicar tintim por tintim que não é bem assim e que existem objetos que podem, sim, ser jogados para o alto e não cair. Mas isso já está, ou pelo menos deveria estar, lançado na coluna de prejuízo de qualquer balanço que faça a respeito do saldo político de Bolsonaro.

Numa avaliação simpática ao presidente, ele parece saber disso e dá a impressão de provocar esse tipo de situação porque isso lhe rende dividendos junto a seus apoiadores mais fiéis. Já uma interpretação desfavorável, isso aconteceria porque foi a única saída que encontrou para sua falta de argumenos. Mais polido e mais habilidoso com as palavras, Doria parece se beneficiar com essa disputa. A questão é outra: será que ao acusar Bolsonaro de fazer campanha em meio à crise ele não estará comentendo o mesmo pecado? Independente da resposta, o certo é que nenhum dos dois ganha com a antecipação das açoes eleitorais. Todos perdem. Inclusive o país que está parado à espera de uma solução para a pandemia.


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