Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

O cachorro e a mentira

“No baile de máscara que vivemos, basta-nos o agrado do traje, que no baile é tudo.” Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego

Foto: Reprodução
O advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay


Há muitos anos, sofri um acidente de carro terrível. Acordei com a cabeça enfaixada, os olhos vendados e os braços amarrados à cama. Um drama! O silêncio absoluto me remeteu à ideia da morte. Como a gente não sabe o que é a morte ou como ela é, minha primeira impressão foi a de que eu havia morrido. Senti-me leve e não angustiado; eu estava morto. Mas, então, escutei uma conversa ao fundo e pressenti que ainda estava vivo e atento.

Chamei alguém da minha confiança e pedi que me respondesse, com a mais pura sinceridade, algumas dúvidas. Precisava da verdade para saber sobre o que eu deveria lutar. Primeira pergunta: “algum estrago nos ‘países baixos`?’; “nada” , resposta recebida. Ufa! Segunda: “estou cego?” ; “de um olho, o outro não foi afetado. Talvez tenha que colocar olho de vidro”. Terceira: “corro risco de morrer?”; “só saberemos em 48 horas” . Pronto, eu tinha um quadro e sabia, ou julgava saber, por onde eu deveria me situar. E fui para o embate.

Hoje, após 13 cirurgias no olho, até mesmo em Moscou, continuo com o olho furado e até enxergando umas sombras super legais. Para quem perdeu a visão, a sombra é uma companheira de primeira linha. São mais do que sombras, funcionam como imagens um pouco mais distantes, mas imagens.

Passadas quatro décadas, vejo-me, às vezes, como que amarrado em laços que não consigo decifrar e sem enxergar com a exatidão que julguei que a maturidade me permitiria. O mundo , definitivamente, não permite uma visão clara e humanista que eu acreditava representar a obviedade da vida. Uma onda fascista insiste em turvar os olhos e distorcer as imagens que deveriam ser claras. Depois de quatro anos de um obscurantismo abjeto no Brasil , com figuras escatológicas ocupando o espaço público e com lugar de fala privilegiado, a mediocridade assume cada vez mais uma representação.

Como se não bastasse ter que conviver com os bolsonaristas, que parecem ter saído de um esgoto em putrefação, agora, nossa vizinha  Argentina elege uma figura caricatural que tem um cachorro como um deus - um mastim inglês chamado Conan que morreu de câncer.  Milei contratou os serviços de um médium, que compartilhava da sua ideologia anarcocapitalista, para traduzir os pensamentos do cachorro. Ou seja, o chamado Bolsonaro da Argentina, que acaba de ser eleito Presidente da República, considera que a clonagem do seu animal de estimação é um ato natural e afirma que “se o Conan me aconselhar em política significa que ele é o melhor consultor da humanidade”

Pressinto que, na verdadeira guerra da barbárie contra a civilização, ainda teremos muito caminho a percorrer. A mediocridade virou uma regra e, cada vez mais, as armas da mentira e do engodo tomam corpo na sociedade. Aqui no Brasil, a milícia e o crime organizado dominam boa parte da política, especialmente no Rio de Janeiro. E o nível do Congresso Nacional faz com que a gente sinta vontade de clonar o cachorro do Milei para vir aqui dar umas palestras. É tão assustador e ainda existe uma banalização preocupante da violência e da desumanização.


Nas grandes cidades, milhares de pessoas se amontoam morando nas ruas. Mais de 300 mil brasileiros vivem ao relento sem ter um teto. Ou seja, um em cada mil brasileiros vive em situação de rua. No Distrito Federal, três em cada mil moradores vivem na rua. E a sensação que temos é a de que, para sobreviver no caos, o cidadão fecha os olhos, como se cego fosse; sente-se atado, preso e amarrado em um círculo de giz invisível que nos aprisiona a todos.

Para alguns, esse imobilismo leva a um ceticismo que alimenta os “Bolsonaros” e os “Mileis”; para outros, vira um mantra que rega o fascismo que andava despercebido. E, de uma forma ou de outra, entre uma mentira que, desavergonhadamente, serve de opção política e um conselho de um cachorro, que se manifesta mediunicamente, a civilização vai sendo vencida e, cada vez mais, o homem perde espaço para o bizarro e para a teratologia.

Como nos ensina Mia Couto, no poema Cego:

“Cego é o que fecha os olhos e não vê nada. Pálpebras fechadas, vejo luz. Como quem olha o sol de frente. Uns chamam escuro ao crepúsculo de um sol interior. Cego é quem só abre os olhos quando a si mesmo se contempla.”

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay