É impossível superar um trauma se não fizermos um enfrentamento real das feridas e de suas sombras. O Brasil ainda passa por um momento pós-traumático dos ataques à democracia e das consequências nefastas de quatro anos de um governo corrupto, banal e fascista. As garras do fascismo lembram a famosa incursão do velho Pessoa pela área da publicidade, quando cunhou frase instigante e brilhante ao fazer uma propaganda para a Coca-Cola: “Primeiro estranha-se; depois entranha-se”. O fascismo é como uma praga que, sub-repticiamente, deixa marcas nas pessoas e na sociedade. Derretem-se os valores humanistas e corrompem-se os sentimentos humanitários. A própria noção de civilização tende a sofrer, ante a barbárie que se instala.

Por isso mesmo, repito à exaustão: é necessário valorizar todas as pessoas e instituições que conseguiram fazer frente - cada um à sua maneira e colocando o pé na porta -, para impedir a perpetuação do desastre que representa o bolsonarismo e seus consectários. Valorizar e apoiar. Não tenho dúvida de que estivemos todos cercados por um círculo de giz invisível, que estrangulou alguns e serviu de proteção a outros. Nem todas as pessoas reagem bem a pressões e ameaças. Esse bando que saqueou o país não hesitou em, estrategicamente, inocular o ódio, a violência, o medo e a desesperança no seio da sociedade. Sem escrúpulos, fez da mentira e do engodo suas armas. O país foi como que emparedado e submetido a um tratamento de choque, onde vendas tampavam os olhos, o ar era rarefeito e as vozes saíam roucas ou até emudeciam. Resistir foi um ato de coragem. E de necessidade.

Passados os embates que levaram à vitória da democracia nas urnas, é hora de reconstruir o país e voltar a respirar ares democráticos. Tenho insistido que, para sairmos mais fortes nesses momentos, não podemos ceder à tentação de usar os mesmos métodos da barbárie que combatíamos. Senão, a barbárie terá vencido e o processo civilizatório dará passos para o abismo. Este é o principal sinal de
amadurecimento: dar aos inimigos - e aqui, no caso, são mais do que adversários - toda a estrutura democrática que eles tentaram liquidar.

Como o Poder Judiciário foi a peça fundamental nesse embate cruel e desigual contra os golpistas e abutres da civilização, sendo responsável pela manutenção da institucionalidade, todos os olhos se voltam para ele neste momento. E, mesmo revolvendo as dores que não devem e não podem ser esquecidas - até para não serem repetidas –, agora é hora da maturidade democrática. Mais do que nunca, faz-se imperioso termos o rigor e o cuidado com os direitos dos que atentaram contra a Constituição e contra o Estado democrático de direito. E a saída é simples: cumprir a Carta Magna, sem perseguição, mas sem nenhum tipo de perdão, anistia ou complacência. E, principalmente, sem permitir que os excessos covardes que marcaram esse grupo, desde a era lavajatista, manchem o processo penal democrático a que serão submetidos. Já é hora dos três poderes se ocuparem dos seus espaços naturais, cada um na sua vocação constitucional. Só assim restarão tempo e oportunidade para nós, pessoas comuns, darmos asas aos nossos sonhos, em busca de uma tranquilidade, e até felicidade, que pareciam ser inatingíveis.

Lembrando-nos do irrequieto Leminski:
“Uma pálpebra,
mais uma, mais outras,
enfim, dezenas,
de pálpebras sobre pálpebras
tentando fazer
das minhas trevas
alguma coisa a mais
q ue lágrimas.”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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