Há muitos anos, fui ao aeroporto de Brasília receber o Prêmio Nobel da Paz Adolfo Perez Esquivel, que voltava de um périplo pelo Nordeste visitando trabalhadores rurais. Ele estava exausto e pediu para ir a uma churrascaria discreta, comer uma boa carne com um vinho honesto. Apenas nós dois, sem imprensa. Estávamos quase escondidos, felizes, quando chegou uma jornalista conhecida por ser, digamos, imprevisível. Reclamou de ele não querer dar entrevista e sentou-se à mesa. Falei, educadamente, que ele gostaria de ficar só. Ela jogou um pequeno cinzeiro em mim. Esquivei-me e o cinzeiro bateu no nariz do Esquivel. Um prêmio da paz em guerra.
Lembrei-me desse fato recentemente, no dia 2 de janeiro, quando recebi, em meu restaurante Fuego, o Prêmio Nobel da Paz e atual Presidente do Timor Leste, José Ramos-Horta. Ele estava em Brasília para a posse do Lula e eu o recepcionei com um jantar no qual estavam ministros do Judiciário, ministros de Estado, governadores, a Presidente do PT e outros amigos. Uma ótima carne, bons vinhos, cachaça - ele prefere - e jornalistas amigáveis. Uma noite em que era possível sentir no ar a mudança de ares em Brasília e no Brasil, devido a posse do novo Presidente e a derrota do fascista.
O Ramos-Horta confidenciou-me que iria procurar o Lula e propor a ele que fizesse uma campanha pela paz entre Rússia e Ucrânia. Na visão dele, Lula teria estatura para levar essa questão e ser ouvido no mundo inteiro. Eu disse que essa guerra envolvia tantos interesses e que muitos líderes mundiais não estavam preocupados com o desastre humanitário.
Agora, no dia 24 de fevereiro, o conflito completa um ano. Os dados são desencontrados, mas há quem fale em 180 mil soldados russos e 100 mil ucranianos mortos em combate. E a tragédia do assassinato de, pelo menos, 40 mil civis. A guerra vulgarizou, virou banal e não ocupa mais os noticiários. Depois de tantas imagens cruéis exibidas com o natural espanto, o dia a dia da dor deixou de comover. A rotina da morte, dos estupros, das pessoas perambulando no frio sem destino e o desespero das crianças são “só” a realidade, sem ser pauta a ser noticiada. Os interesses econômicos e geopolíticos da guerra não deixam espaço para nenhum sentimento. A visita surpresa do Presidente americano Biden a Kiev, capital da Ucrânia, nesta semana, coloca mais combustível e tenta isolar Vladimir Putin.
Dificilmente a intervenção do Presidente Lula pode realmente surtir o efeito desejado. Essa guerra é muito maior, infelizmente, que a tragédia humanitária que ela representa. Os interesses não estão postos, com clareza, numa mesa de negociação e superam os protocolos humanistas. Mas uma coisa chama a atenção: o papel do Presidente Lula no mundo. Depois de convivermos com um pária insensível e desprezível como Presidente do Brasil, que nos relegou ao ostracismo e que envergonhava o país, Lula volta à cena como um estadista.
No mundo da diplomacia, mesmo com a manipulação econômica dando as cartas, ainda tem lugar o valor simbólico dos atos. E Lula sabe, como ninguém, posicionar-se com dignidade e impor o respeito que o país precisa voltar a ter no cenário internacional. Pode não mudar a triste realidade de uma guerra cruenta e covarde, mas ver o Brasil de volta às questões humanistas que interessam nos faz bem e nos conforta.
Numa semana de uma catástrofe no litoral paulista com, pelo menos, 47 mortos, 40 desaparecidos e 1.500 desabrigados, tragados pela enchente em São Sebastião, e pela incompetência dos governantes, a presença do Presidente Lula no local interrompendo imediatamente seu descanso nos leva, inexoravelmente, à comparação com o desastre ocasionado pelas chuvas na Bahia em 2021, quando o ex-Presidente Bolsonaro, insensível e debochado, brincava com a dor dos outros enquanto andava de jet-ski em Santa Catarina.
Na vida, os gestos valem muito, mesmo quando, às vezes, eles não conseguem mudar a realidade. São atitudes que marcam a diferença entre a empatia e o desprezo, a arrogância e a solidariedade, a civilização e a barbárie. Seja em São Sebastião, ou em Kiev, a humanidade tem lado. E o lado do Lula nos acolhe. Merece anotar o bruxo Machado de Assis, “O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco”.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay