Há vários motivos para sentir angústia ultimamente: o rescaldo da pandemia, o medo ainda da doença, a morte rondando, o pavor da guerra e a incredulidade com um governo que deixa o Brasil à deriva e destrói, sistematicamente, todas as conquistas humanistas das últimas décadas. De todas as mortes, a que mais me choca é a falta de rumo e de expectativa do refugiado durante o conflito. Equiparável à fome, que hoje assola 20 milhões de brasileiros.
Não consigo entender como uma família pode estar, numa noite, sentada à mesa em um jantar trivial fazendo planos sobre as banalidades rotineiras e, no outro dia, pela manhã, sob o impacto de bombas, todos têm que deixar o lar, em desabalada fuga, para tentar a sorte numa luta pela sobrevivência. É cruel e desumano. Esse interromper da vida é um enredo muito brutal. É, sob vários aspectos, muito mais duro do que o próprio fim da vida, pois é o esvaziamento de qualquer sonho.
A expectativa é de que a guerra levará à miséria algo em torno de 90% dos ucranianos. O país está sendo devastado. É impossível não analisar a reação do mundo nessa batalha televisionada ao vivo, com a ficção dos games de violência sendo superada pela realidade. O pavor passa a ser o nosso companheiro diário. E o impacto da cobertura jornalística desse momento é um dos fatores que, também, define os destinos da própria contenda. Parte da mídia começa a mostrar o abismo humanitário no qual o mundo foi jogado.
O rapto de crianças para serem vendidas como escravos sexuais e as dezenas de estupros que ocorrem na Ucrânia representam um terror dentro do terror. Uma guerra à parte! A corrosão completa de qualquer resquício de compaixão que ainda poderia existir. A expressão da falência do ser humano pode ser resumida na frase dita pelo deputado “bolsomorista” referindo-se às ucranianas nas filas para fugir da guerra: “são fáceis porque são pobres”. Dói. Assusta. Enoja e causa repugnância.
Um artigo do grande jornalista Jamil Chade mostra um outro lado do impacto desse conflito sobre as pessoas. Muito além da análise geopolítica, ele faz um intrigante relato sobre como o mundo reage à guerra midiática que mata “europeus louros e de olhos azuis”.
Ele informa que, em 20 dias da invasão à Ucrânia, a ONU já arrecadou mais doações do que todo o ano de 2021 para crises gravíssimas na África, na América Latina e na Ásia. O jornalista demonstra que, embora evidentemente os 3 milhões de refugiados ucranianos agradeçam, a solidariedade seletiva causa desconforto e certa incredulidade.
E o mestre Jamil joga os números na nossa cara: enquanto as doações para os refugiados da Ucrânia, em 15 dias, já se aproximam de 50% de tudo que a ONU solicitou como assistência emergencial, no mesmo período, a entidade recebeu apenas 3,5% do total de US$ 41 bilhões que serão necessários para socorrer 183 milhões de pessoas, em 63 países, que são vítimas de guerras, pobreza e desastres ambientais.
Tudo isso diz sobre o mundo em que vivemos. Sobre quem somos. Quando a ajuda é mensurada pela cor da pele e por questões geográficas e políticas, é sinal de que a humanidade perdeu todos os parâmetros.
É uma outra face da guerra: aquela que nos desnuda e que nos faz notar que uma venda caiu sobre os olhos das pessoas causando uma cegueira coletiva. Como uma máscara que não nos deixa respirar. Preso em um círculo invisível de giz, o homem perde a capacidade de reagir e de se indignar.
E a imagem dos refugiados andando sem rumo no frio, com sede e fome, talvez nos choque tanto por sabermos que somos todos, de certa forma, refugiados em busca de um mundo no qual a solidariedade e a igualdade sejam a regra e, por isso mesmo, nem chamem atenção e nem virem notícia. Pobre de nós.
Como diz Paul Valéry: “a melhor maneira de realizar seus sonhos é acordar”.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay
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