Desde o início do anterior governo, a democracia brasileira estava sob alto risco. Não apenas por causa de um governo reacionário que fez do desmonte da Democracia o seu objetivo estratégico, mas também porque uma parte da sociedade brasileira abandonou a sua afeição por ela. Uma de suas causas foi o descaso com a organização da vida popular e a descrença no papel que uma cidadania pode desempenhar nas Democracias.
Muito antes do assalto da Praça dos Três Poderes, já se viam os riscos de que uma ralé de novo tipo, com extração nos setores da classe média, em busca de fama e de riqueza fácil, inebriadas pelo mito pós-moderno da personalidade vislumbrasse na sociedade indefesa e sua hora e vez como em Augusto Matraga.
A infiltração desses vândalos em postos importantes, inclusive no Itamaraty e no sistema de representação política, era uma grave ameaça à obra inacabada da civilização brasileira.
O Brasil não é uma ilha, e faz parte, desde sua origem, do sistema capitalista mundial, filho do Ocidente. Sua formação se forjou sob a influência das correntes de ideias que nos vinham da França, no Império, segundo a modelagem operada pelo Visconde do Uruguai, e, na República, dos Estados Unidos, que inspiraram em larga medida a primeira Constituição, em 1891, obra em grande parte derivada da influência de Ruy Barbosa na sua redação.
A derrota do anterior governo interrompeu o caminho para a Barbárie, mas parece que a verdadeira dimensão dos riscos que a Democracia brasileira corre tem de ser reavaliada por todos os brasileiros. Nesse aspecto, a viagem do presidente Lula a Washington demonstrou, no ano passado, que a rota histórica de nossas relações internacionais foi retomada, tendo por centro a Democracia e o Estado de Direito.
Retoma-se o eixo democrático da diplomacia do Barão de Rio Branco, de Joaquim Nabuco e de Osvaldo Aranha. Oriente e Ocidente não são apenas espaços geopolíticos, são culturas, valores e conceitos que remontam há quatro mil anos de processo civilizatório, desde a antiguidade grega.
A história viajou do Oriente, seu começo, para o Ocidente, a sua modernidade. E é esse Brasil moderno e civilizado que o nosso novo Governo representa para o mundo e para a percepção da opinião pública internacional e da maior parte dos líderes mundiais.
A pós-modernidade, porém, por causa da China, é uma nova disputa entre Oriente e Ocidente no plano das estruturas políticas. O Brasil não tem como fazer um percurso diferente, mesmo tendo um pé no Oriente ibérico, como nos mostrou Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil.
Um dos traços característicos dos povos ibéricos é a cultura de personalidade que consiste em se apegar a uma pessoa mais do que a seus títulos ou posição social. O personalismo é a marca de uma sociedade que não consegue se organizar por si mesma.
Relações sociais são marcadas pela empatia, seja a familiar, seja de afinidade. O personalismo atravessa, portanto, todas as camadas sociais. Nele, a obediência também é vista como virtude e sinônimo de lealdade. Um pouco da polarização política brasileira decorre desse fenômeno.
O presidente Lula tem a compreensão dos riscos dessa realidade. A herança da escravidão e da estrutura agrária colonial estão na raiz da desigualdade social brasileira e da formação da nossa elite econômica e política tradicional.
Acabamos de nos livrar de um governo inspirado na experiência neoliberal chilena que trabalhou para desconstruir o acervo social democrata dos governos da redemocratização, mas também a herança liberal republicana que deu sustentação ao Estado brasileiro nos momentos de predomínio da Democracia na vida nacional.
A conversa entre Lula e Biden - e esse diálogo permanente - pode nos ajudar a olhar para frente ao destacar a defesa do processo democrático, uma política econômica voltada para a reindustrialização do país, defesa do meio ambiente, combate às desigualdades e inclusão das minorias. Uma pauta comum que ajuda, ambos os países, a afastar os riscos e as ameaças ao processo democrático e ao Estado de Direito.