Sâmia
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Sâmia

* Por Bruno Bimbi

A principal causa de mortalidade infantil no mundo este ano é Israel», diz uma publicação da deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) com dezenas de milhares de curtidas. É um delírio, mais um: desde 7 de outubro de 2023, quando os terroristas de Hamas cometeram o maior massacre de judeus desde o Holocausto, levaram mais de 250 reféns e iniciaram esta guerra insana, alguns políticos juram que a culpa de tudo o que acontece no mundo é de Israel. 

Primeiro, voltemos à realidade: a maior mortalidade infantil ocorre na África subsaariana e suas principais causas são complicações no parto, pneumonia, diarreia, malária e desnutrição. Em outras palavras: o que mais causa mortalidade infantil é a pobreza, a extrema desigualdade e a falta de políticas de saúde. Uma deputada de esquerda deveria saber isso.

Mas este novo libelo contra Israel tem força porque se apoia nos anteriores, já famosos. É falso que, como repete cada semana o presidente Lula, a maioria dos mortos na Faixa de Gaza sejam mulheres e crianças: são homens na faixa etária dos terroristas (de acordo com as Forças de Defesa de Israel, o Hamas já teve por volta de 20.000 baixas). É falso que seja uma guerra “de um exército contra mulheres e crianças”: o Hamas tem dezenas de milhares de soldados fortemente armados, foguetes, explosivos, infraestrutura militar, uma gigantesca rede de túneis, e o apoio do Irã, das milícias xiitas da Síria e do Iraque, dos huthis e do Hezbollah. Desde outubro de 2023, todos eles atacaram o Estado judeu de norte a sul e de leste a oeste, com dezenas de milhares de mísseis, drones e foguetes, além de organizar atentados no seu território. No Oriente Médio, o pessoal não faz ciranda, abaixo-assinados e notas de repúdio: eles matam. Em cada bairro de cada cidade de Israel há sirenes e refúgios antiaéreos para proteger as pessoas – e por isso, e pelo Domo de Ferro, os mortos não são dezenas de milhares.

Mas é verdade que muitos civis palestinos inocentes morreram na guerra, inclusive crianças. Provavelmente milhares. A morte de crianças é um fato horrível, em qualquer guerra. E é triste independentemente do número, porque uma única criança palestina morta (mesmo que como consequência indesejada de uma guerra) deveria ser suficiente para nos comover, como nos comovem as crianças árabes e judias que o Hamas (de forma mais do que desejada: a sangue frio) sequestrou, torturou e matou. Nada disso justifica inventar números ou falsificar notícias, muito menos dizer que Israel é culpado pela mortalidade infantil no mundo, mas mesmo essas mentiras dos inescrupulosos e dos irresponsáveis não devem apagar a dor real: toda mãe que chora seu filho nos faz chorar com ela, seja árabe ou judia, nesta guerra ou em outras. Quem viu sua mãe chorando outro filho sabe do que estou falando.

De acordo com UNICEF, mais de 473 milhões de crianças – mais de uma em cada seis em todo o mundo – vivem em áreas afetadas por conflitos. No Sudão, desde 2023, mais de 522 mil crianças morreram de fome como consequência da guerra e o país enfrenta a pior crise humanitária do mundo: dezenas de milhares de mortos, mas de três milhões de refugiados e oito milhões deslocados. Na Síria, até a queda do ditador Assad, a guerra civil tinha matado mais de 500 mil pessoas – entre elas, mulheres e crianças – e levado mais de cinco milhões para o exílio, além de outros 7 milhões de deslocados internos. No Iêmen, além das milhares de crianças mortas pela guerra, a ONU estima que há mais de 500 mil gravemente desnutridas. Na Nigéria, além de ter uma das maiores taxas de mortalidade infantil do mundo (72,2), centenas de meninas são sequestradas para servir como escravas sexuais dos terroristas islâmicos do Boko Haram. No Haiti, cerca de três milhões de crianças precisam de ajuda humanitária e milhares são recrutadas a cada ano pelas gangues que assolam o país. E o que dizer da Ucrânia, com quase sete milhões de refugiados espalhados pelo mundo e mais de 40 mil civis mortos desde a invasão russa, entre eles, centenas de crianças? Será que a culpa disso tudo também é de Israel?

O último tuíte da Sâmia sobre a guerra na Ucrânia foi em 2022. Sobre a Síria, em 2018. Sobre o Iêmen e o Sudão, nunca. Todas as guerras são horríveis. Espantosas. Matam milhares de inocentes, provocam fome, exílio, deslocamento. Deixam cidades inteiras devastadas, gente sem casa, crianças órfãs, pernas amputadas. A devastação total em muitas regiões da Faixa de Gaza é estarrecedora, assim em Alepo, Darfur, Kiev e outras cidades que, filmadas por drones, parecem a mesma, embora a guerra seja outra. Assim como em tantas guerras anteriores, que não mobilizaram tantos políticos, ativistas e internautas pelo mundo porque «No jews, no news».

O melhor que pode acontecer numa guerra é ela acabar ou, melhor, nunca começar.

Mas então, por que a deputada Sâmia não disse nada quando o Hamas assassinou mais de 1200 civis israelenses a sangue frio, casa por casa, a tiros e facadas? Não foram vítimas colaterais, mas uma carnificina feita à mão, que eles comemoravam dançando e gritando «Allahu Akbar». Não havia, naquele dia, um único soldado israelense na Faixa de Gaza (nem um único judeu, desde 2005!), e foi assim que esta guerra começou. Por que ela não disse nada quando entraram atirando na Festa Nova e massacraram centenas de jovens como num videogame? Cadê a deputada quando o menino Ariel Bibas, de 4 anos, e seu irmão Kfir, um bebê de oito meses, foram sequestrados junto a outras centenas de civis? Eles mataram dezenas de crianças e sequestraram outras dezenas – ou não eram crianças também? O que eram? E quando os corpos sem vida dos Bibas foram entregues em caixões, brutalmente assassinados, a deputada não soube?

A palavra ‘Hamas’ não aparece em nenhum tuíte da Sâmia, nem a palavra ‘reféns’, como se a guerra tivesse um lado só, eternamente culpado. Seu primeiro tuíte sobre esta guerra, desde o ataque terrorista de 7 de outubro, foi uma fake news acusando Israel de ter bombardeado um hospital e matado 500 pessoas. Nunca aconteceu – não foi um bombardeio, não foi Israel, não era um hospital e não morreram 500 pessoas –, mas é repetido até hoje.

Desde que a guerra começou, vários parlamentares do PSOL e outros partidos de esquerda publicaram inúmeras mentiras, além de acusar falsamente o Estado judeu de genocídio, colonialismo, limpeza étnica, apartheid. Promoveram campanhas antissemitas, como a que pede o rompimento de relações acadêmicas entre universidades brasileiras e israelenses; repetiram a frase “do rio ao mar” (esta sim, uma incitação ao genocídio ou à limpeza étnica) como grito de guerra e a palavra “sionista” como xingamento. A Sâmia até tirou foto ao lado de ativistas que apoiam o Hamas e, ao mesmo tempo, nunca aceitou conversar com a comunidade judaica. Outras lideranças do mesmo partido não concordam com nada isso, mas também não agem. Ficam com medo de ser cancelados pela própria militância e pedem tempo (“quando a guerra acabar”) para levar a sério o problema do extremismo, o preconceito e o ódio em suas fileiras.

Em 2019, eu renunciei à executiva estadual do PSOL-RJ, no meu terceiro mandato, cansado de enfrentar os odiadores. Era insuportável. E não havia guerra, mas até o Shimon Peres eles chamavam de “genocida”. Os militantes judeus do partido, a maioria jovens, eram assediados pela corrente da Sâmia em seus perfis, no Facebook, com a frase «Fora, sionistas!» (o sionismo nada mais é do que o movimento de autodeterminação nacional do povo judeu) e até acusados, em plenárias da militância, de serem “agentes do Mossad”.

Há décadas que mentiras e teorias conspiratórias são usadas, na bolha progressista, para provar que o Estado judeu é o pior vilão do mundo e os sionistas (ou seja, 95% dos judeus do mundo), são gente malvada, como na caricatura dos Protocolos dos Sábios de Sião. Se tudo o que eles dizem que Israel e “os sionistas” fazem fosse verdade, como não sentir repulsa e até ódio? Como não ficar com raiva? E aí vem um maluco, dias atrás, e mata a tiros um casal que saía de um evento no museu judaico de Washington, e todos nos perguntamos: “Como foi que isso aconteceu?”.

Como foi? Poucos dias antes da postagem da deputada Sâmia, a BBC divulgou a falsa notícia de que 14 mil bebês de Gaza poderiam morrer por desnutrição nas seguintes 48 horas, o que só foi desmentido – pela própria emissora britânica – quando o mundo inteiro já tinha acreditado. Não havia notícia alguma, mas apenas uma interpretação desonesta de um estudo que apresentava uma hipótese sobre a mortalidade infantil ao longo do próximo ano (e não das próximas 48 horas), condicionada a uma série de fatos improváveis. Por exemplo, que não ingressasse nenhum tipo de ajuda humanitária à Faixa de Gaza ao longo de um ano inteiro! Na última semana, ingressaram 388 caminhões com alimentos, remédios e equipamentos médicos e, desde que a guerra começou, foram 1,7 milhão de toneladas de ajuda. As 48 horas já passaram há vários dias e nada aconteceu, mas até o presidente do Chile, Gabriel Boric, compartilhou a fake news.

Na mesma semana, um deputado da esquerda britânica, Clive Lewis, publicou a foto estarrecedora de uma suposta criança palestina com a cara queimada por um bombardeio israelense, mas era uma criança da Turquia que padece uma doença grave na pele. E houve outras, muitas outras mentiras (muitas delas, sobre crianças); dezenas cada mês, cada semana.

Tudo isso tem consequências.

O antissemitismo está crescendo no mundo inteiro graças a esse tipo de discursos. Assédio a estudantes judeus nas universidades (seja nos EUA, na Europa ou no Brasil), pixações em sinagogas, cemitérios e escolas judaicas no mundo inteiro, judeus com medo de levar kipá na rua, boicote e difamação contra uma cantora israelense (e sobrevivente do massacre) em Eurovision, a rede social infestada de velhos e novos clichês antissemitas.

A realidade, sem aditivos, já é triste e dolorosa demais. A situação humanitária na Faixa de Gaza é grave. A guerra precisa acabar, mas isso não depende apenas de Israel, e passar pano para o Hamas não está ajudando a chegar a lugar nenhum. Mentir, exagerar e demonizar os judeus também não ajuda os palestinos. E nem ajuda a entender um conflito tão longo e tão complexo, sobre o qual a maioria sabe tão pouco.

Na verdade, postagens como a da deputada Sâmia só ajudam a ganhar likes.

E, claro, é o que a militância mais fanática quer e aplaude. Falam para a própria base, mas contaminam o debate público e conspiram contra a sensatez.

E, ao agradar a base com mentiras e preconceitos, o círculo vicioso piora.

Mas, enquanto tantos políticos extremistas fazem isso – incitam ao ódio, espalham fake news, ou assinam notas chamando os terroristas de “heróis corajosos” e os reféns de “prisioneiros” – para ganhar likes e agradar a base, há outras imagens da Faixa de Gaza que eles não veem.

Ao longo dos últimos meses, dia após dia, dezenas de milhares de palestinos saíram às ruas, de Beit Lahia a Jabalia, de Gaza a Deir al Balah, de Khan Yunis a Rafa, gritando: “Fora, Hamas, fora!”, “Libertem os reféns!”, “Queremos viver!”. Da mesma forma que, do outro lado da fronteira, milhares de israelenses protestam contra Netanyahu e seu governo.

Ambas as sociedades estão cheias de nuances e contradições e seus líderes representam apenas uma parcela delas – com uma diferença que não pode ser omitida: o governo israelense pode mudar na próxima eleição; em Gaza não há eleições. A esquerda brasileira, por incrível que pareça, não entende que o governo do Hamas é uma ditadura. Mas há outras vozes, que a gritaria não nos deixa ouvir, deputada Sâmia. Também há outros caminhos para a paz.

A realidade é mais complexa que as palavras de ordem dos fanáticos e dos oportunistas.

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*Bimbi é jornalista, escritor, ativista LGBT, doutor em Estudos da Linguagem (PUC-Rio) e autor dos livros “Casamento igualitário” e “O fim do armário”. Foi membro da Executiva Estadual do PSOL-RJ. É gerente Sr. de Estratégia Política da StandWithUs Brasil.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal iG

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