No fim da noite de 24 de maio de 2019, Márcio Garcia da Silva, o Mug, estava preocupado . O homem, apontado pelo Ministério Público do Rio como gerente dos pontos de jogo da área explorada pelo bicheiro Rogério Andrade, havia sido informado de que a polícia estouraria um bingo controlado pelo grupo em Curicica, na Zona Oeste da cidade. “Atenção, me ligaram, e o cara queria saber de quem era a situação e... e os caras do ‘2’ querendo fechar. Entendeu? Vão lá para quebrar tudo”, disse Mug, por mensagem de voz, ao comparsa Jeferson Tepedino Carvalho, o Feijão, que operava o bingo e estava no local. Os “caras do 2”, segundo o MP, são os integrantes do serviço reservado, a P-2, do 31º BPM (Barra da Tijuca). Em resposta, Feijão escreveu que o bingo estava cheio de clientes e perguntou se deveria fechá-lo. Mug autorizou o fechamento, mas disse que apresentaria um “esqueminha” ao comparsa para que a situação não viesse a se repetir.
“Depois eu te apresento o pessoal da ‘2’ que é daí e aí tu faz aquele esquema que eu te falei, entendeu? Levo aí para te apresentar e você fazer aquele esqueminha. Para você ter um seguro”, disse Mug. Para o Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MPRJ, o “esquema” proposto por Mug era, na verdade, um “acerto corruptivo com policiais militares, para viabilizar a exploração da área” sob controle de Rogério Andrade. Mensagens coletadas ao longo da investigação que culminou na Operação Calígula, deflagrada na semana passada contra a quadrilha de Andrade, revelam como são costurados os acordos de pagamentos de propina entre bicheiros e policiais militares e civis para que a máfia que opera o jogo ilegal possa atuar sem ser importunada.
Oficiais cooptados
No caso do bingo de Curicica, as mensagens trocadas por Mug e Feijão mostram que o acerto com os policiais foi concluído naquela mesma noite. Cerca de 15 minutos depois do fechamento da casa, Mug chama o comparsa para “encontrar os caras” num posto de gasolina na Barra da Tijuca. Feijão diz que vai ao local num carro de aplicativo. Uma hora depois, com a reunião já concluída, o operador do bingo perguntou se poderia abrir o estabelecimento no dia seguinte. “Normal”, confirmou Mug.
Os diálogos mostram que até oficiais de alta patente são cooptados. Em setembro de 2018, a corporação havia decidido trocar o comando do batalhão da Barra. Na ocasião, o sargento reformado Ronnie Lessa, acusado pelo homicídio da vereadora Marielle Franco e apontado como sócio de Rogério Andrade num bingo na Barra, havia sido designado pela quadrilha como responsável por acertar o pagamento de propinas para que a casa pudesse ser reaberta. Por isso, segundo o Gaeco, ele ficou animado quando soube de alguns nomes que assumiriam cargos no batalhão: “Vai vendo e vai me mantendo informado aí de quem chega e quem sai. Pô, o que está chegando é ‘irmãozão’ de um ‘brotherzão’ também, meu ‘fechamento’, entendeu? Então, a gente está cercando maneirão, está ficando bom”, disse Lessa, numa mensagem de áudio ao sargento Maurício da Conceição dos Santos Júnior, lotado no 31º BPM, apontado pelo Gaeco como um intermediário entre Lessa e oficiais do batalhão.
Na semana seguinte, após a equipe assumir a unidade, o PM reformado seguiu fazendo contatos para encontrar os novos responsáveis pelo batalhão. Para um sócio na exploração do bingo, Lessa escreveu que um “coronel amigo” havia conseguido intermediar uma reunião com oficiais da unidade: “O cel (coronel) amigo disse que os dois coronéis que precisamos marcaram com ele na sexta-feira. Eles nem sabem ainda do que se trata, portanto vamos trabalhar com a maior discrição possível, pois estamos sem garantia até lá”. Segundo o MP, “não resta dúvidas do acerto corruptivo com a PM”.
Outro diálogo mostra que a quadrilha também tem influência sobre a transferência de policiais entre batalhões. Em maio de 2019, um sargento lotado no 18º BPM enviou seus dados — nome completo, registro na PM e situação médica — para Mug. No mesmo dia, Mug encaminhou as informações a um vereador com atuação na Zona Oeste do Rio pedindo ajuda para transferir o policial para o 14º BPM (Bangu): “Ele quer ir para o 14º batalhão”. Na investigação, não há informação sobre o resultado do pedido.
Já na Polícia Civil, acordos preveem a entrega de máquinas caça-níqueis velhas pelos bicheiros aos policiais, para que a delegacia possa se mostrar ativa no combate ao jogo ilícito. Em abril de 2018, Mug perguntou a um comparsa se conhecia “o pessoal que entrou na 30” — em referência à 30ª DP (Marechal Hermes). O interlocutor cita o nome de um agente lotado na unidade, e Mug responde qual o motivo do interesse: “Para continuar... levar as marmitas direitinho, para não ter problema... Entendeu?”. “Marmitas”, segundo o MP, são máquinas inoperantes, cuja perda não traz prejuízo à quadrilha. Dias depois, Mug confirma o acerto com a delegacia: “Já desenrolei tudo lá, está tudo certinho lá”. Em outra mensagem, de agosto de 2019, Mug escreveu que comparsas haviam pedido para “arrumar três marmitas em Marechal para fazer um teatro na 30ª DP”.
Acerto em especializada
Outra mensagem, encontrada no celular do PM Márcio Araújo, chefe da segurança de Rogério Andrade, revela que o pagamento de propina não se restringe às delegacias distritais. Em abril de 2020, Araújo relatava a um comparsa que um advogado de Andrade teria ido à Delegacia de Homicídios (DH) tentar descobrir o motivo de o filho do bicheiro, Gustavo, ter sido convocado para prestar depoimento. Na ocasião, o defensor teria sido desrespeitoso com os policiais. “O problema foi que o advogado chegou na DH cheio de marra. O delegado titular esculachou ele, tá querendo arrumar problema. Acha que porque está pagando pode falar o que quiser”, escreveu Araújo.
Procurada, a PM afirmou que “a Corregedoria já instaurou um procedimento apuratório para acompanhar as circunstâncias do caso e, paralelamente, colabora estritamente com as demais esferas do poder público nas apurações sobre os envolvidos”. Já a Polícia Civil alegou que “a Corregedoria-Geral solicitou acesso às investigações e aguarda o envio dos documentos para andamento aos processos administrativos necessários”.
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