Parte do terreno onde se localiza o Parque de Diversões Hopi Hari tornou-se alvo de uma disputa judicial kafkaniana
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Parte do terreno onde se localiza o Parque de Diversões Hopi Hari tornou-se alvo de uma disputa judicial kafkaniana


Uma área milionária no interior de São Paulo está sendo objeto de um imbróglio jurídico com “obscuras intenções”, segundo uma das partes. Trata-se de 94,9 mil m2 (ou 9,49 ha) em Vinhedo , que integram o parque Hopi Hari , atual dono do local. O terreno é descrito por especialistas do ramo imobiliário como um diamante de R$ 60 milhões.

Ele está encravado no Distrito Turístico Serra Azul , um projeto aprovado em 2021 pelo então governador João Doria, que desenhou o que seria o maior complexo turístico e de entretenimento do país. Nos últimos dois anos, foram investidos R$ 700 milhões nos quatro municípios ao redor do parque, mais especificamente, em um campo de golfe do ex-jogador Jack Nicklaus, um Cyan Resort e novas lojas do Outlet Premium. 

Até o final de 2026, projeta-se um investimento de R$ 1,8 bilhão, com mais três hotéis, parque temático Adventure Mall, ampliação de uma hípica, além de trilhos de trem do Circuito das Frutas . Atualmente, cerca de 10 milhões de pessoas ao ano visitam o Hopi Hari e o Wet’n Wild, que já integram o Distrito.

Entenda o caso

. Um terreno do Hopi Hari, com 9,49 hectares e avaliado em R$ 60 milhões, torna-se centro de disputa legal, após ser usado como garantia em um empréstimo junto ao Banco Safra.

. Após o banco conceder uma carta de quitação da dívida, o Hopi Hari é informado sobre uma cessão de crédito adquirida pela Favi Empreendimentos.

. A Favi, empresa sem funcionários e CNPJ suspenso, alega direito sobre o terreno, após o Hopi Hari entrar na Justiça alegando cobranças indevidas. Favi e Safra são os réus do processo.

. O banco reconhece seu erro na quitação da dívida e anula o documento emitido. Mesmo questionando os valores cobrados pela Favi, o Hopi Hari deposita o valor da dívida em juízo. 

. Na Justiça, entretanto, primeira e segunda instâncias desconsideram os depósitos e dão o ganho de causa para a Favi, ordenando a consolidação da propriedade, e colocando o terreno em risco de leilão. 

. O Hopi Hari recorre ao STJ, argumentando a legalidade da quitação e o direito de continuar com o terreno após o depósito judicial de mais de R$ 1,1 milhão. 

Cessão de crédito surpresa e ação do Hopi Hari

O que está acontecendo nos tribunais, em um processo de mais de 2.200 páginas, chama atenção. O parque tornou-se dono do terreno em questão em 2012 e ofereceu o imóvel como garantia, com alienação fiduciária, para um empréstimo de R$ 5 milhões com o Banco Safra. A dívida vinha sendo paga regularmente, até que em 12 de julho de 2017 liquidou o valor registrado com o banco, que então outorgou uma carta de quitação ao Hopi Hari em 12 de julho daquele ano. 

Ao tentar a baixa do gravame (registro feito em qualquer bem que é atrelado a um contrato, e nesse caso, a um empréstimo) no cartório, a gestão do parque descobriu que havia ainda uma cessão de crédito garantida por alienação fiduciária dada para a Favi Empreendimentos Ltda., datada de 7 de março de 2017, no valor de R$ 460 mil (perto de 9% da dívida). 

Em 31 de julho, 19 dias após receber a carta de quitação do Safra, o parque recebeu uma notificação da Favi, cobrando o valor de R$ 848,8 mil e dando 15 dias para o pagamento ou seria feita a imediata consolidação da propriedade em nome da credora. Nesse momento, o parque entrou com uma ação judicial contra o Banco Safra e a Favi pedindo, inicialmente, a declaração de quitação do contrato de empréstimo e, em segundo, a possibilidade de pagar eventual valor residual. A Justiça concedeu ordem liminar suspendendo a consolidação da propriedade em nome da Favi, somado à possibilidade de purgação da mora com depósito no processo de R$ 460 mil – esperando então a perícia judicial para apuração de algum resíduo ainda devido. Ou seja, tudo parou para ser resolvido nos tribunais.

Erro do Banco Safra

O banco afirmou que errou e, no cartório, anulou a quitação dada ao Hopi Hari, prenotando em seguida a inesperada cessão de crédito para a Favi, empresa dos sócios Arsenio Eduardo Correa e José Patti, com capital de R$ 14,8 mil e CNPJ suspenso desde 2007. Ela não tem funcionários e o endereço registrado na Junta Comercial de São Paulo, na Rua Boa Vista, nº 254,10º andar, Centro, é, na verdade, do escritório de advocacia de Correa – que se mudou há dois meses, segundo a administração do edifício Clemente de Faria. 

“Foi um investimento que meu sócio fez... Na verdade, nós fizemos. Fomos ao judiciário para ver o que seria feito. Parece que tem um recurso pendente... Mas não sou o advogado da causa, não acompanho, só meu sócio. É a única informação gerencial que tenho”, disse Correa, que também é advogado, à reportagem.

Perguntado se o Portal iG poderia falar com Patti, ele respondeu: “Não, não, vocês não conseguem falar com ele. Está aposentado, com 95 anos, entendeu? Está bem de saúde, mas não fala com mais ninguém”.

Safra se diz fora da disputa

 “Sim, houve um flagrante equívoco do banco”, explica Ana Paula Batista Poli, advogada do Safra. “Atribuiu-se a matrícula do imóvel ao Hopi Hari, mas isso foi cancelado e agora a matrícula externa a realidade dos fatos. O Safra nem poderia mais outorgar a quitação, pois o crédito naquele momento já era da Favi. No nosso entendimento, não houve prejuízo para nenhuma das partes”, afirma a advogada. 

A advogada que atua pelo banco salienta que não há mais discussão sobre quem é o credor e quem é o devedor: é a Favi e o parque, respectivamente, e a discussão gira apenas em torno do valor a ser pago. O Portal iG tentou contato com a área jurídica do Safra que teria originado a cessão para a Favi, para comentar também o erro, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. 

Honorários advocatícios questionados

Entre os itens na planilha de custos da Favi estão os honorários advocatícios de R$ 195,6 mil – que, vale lembrar, não são relacionados ao atual processo. “Eles colocaram 30% de honorários em cima do valor que seria o pertinente. Isso é ilegal, não está no contrato entre a Favi e o Safra e não poderiam ser cobrados de algo que não assinamos”, diz o advogado Reinaldo Ferreira, que participa de uma das bancas de advocacia que defende o Parque. 

Ainda em recuperação judicial, o Hopi Hari resolveu questionar na justiça esse montante a mais, além do que seria a cessão de direitos, de R$ 460 mil. “Esse valor foi depositado em juízo, ao mesmo tempo em que entramos com uma ação judicial, que seguiu para uma perícia contábil. Foi apurado, pelo perito judicial, nomeado pelo Juiz, um valor residual de R$ 688 mil que, por cautela, também depositamos, para que não restassem dúvidas sobre a quitação da dívida”. 

Quer o dinheiro ou não?

O Hopi Hari perdeu a causa e recebeu com surpresa a decisão em primeira instância. A juíza Fabiana Marini do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que assina a sentença, desprezou os valores pagos em juízo e também a conclusão do perito de que não havia fundamento para a Favi cobrar honorários advocatícios e inflar o valor da dívida. 

Ainda alegou que o terreno não era essencial para as atividades do parque, avançando com a consolidação do direito da propriedade para a Favi – ou seja, a empresa ganharia o direito ao terreno e fazer com ele o que bem entendesse. Além disso, ignorou o fato do terreno em questão ser bem essencial para o Hopi Hari, em recuperação judicial, continuar suas atividades e honrar suas dívidas. 

Conforme apresentado no processo, na área estão galpões industriais com peças de brinquedos do parque, manutenção dos equipamentos, subestação elétrica e cabine de força, enormes linhas de transmissão, área de triagem de reciclados, depósito de produtos químicos, central de GLP, entre outros.

Fotos presentes no processo mostram galpão do parque Hopi Hari em terreno disputado
Arquivo processo
Fotos presentes no processo mostram galpão do parque Hopi Hari em terreno disputado


Marini finalizou alegando má-fé do parque por “sustentar que o imóvel por ela oferecido possui valor elevado em relação ao débito cobrado”. A conta parece simples, contradizendo o juízo: o débito cobrado via cessão é de cerca de R$ 400 mil e o terreno do parque, na alienação, teria, no mínimo, o valor de R$ 5 milhões.  

Pareceristas independentes

O parque recorreu da decisão e valeu-se de dois pareceres para instruir a apelação: o do doutor Melhim Namem Chalhub, autor do anteprojeto da lei de garantias fiduciárias nº 9.514/97, e o do professor de Direito Civil João Biazi, doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.

O Portal iG conversou com os pareceristas do caso, que confirmaram seus argumentos no processo. Chalub diz em seu parecer que “é assegurada ao devedor fiduciante a faculdade de pagamento das prestações vencidas até a data da averbação da consolidação da propriedade (...) e após a consolidação da propriedade e até a data do segundo leilão é assegurada ao devedor de readquirir a propriedade do imóvel pelo valor do remanescente da dívida”.

Ou seja, o parque, segundo a lei, tem o direito de pagar a dívida, mesmo que a credora não queira mais receber. Ainda, se a Favi não aceitar o pagamento já feito em juízo e pedir a consolidação do imóvel para, porventura, leiloá-lo, acabará com um resultado muito parecido com o que já existe, já que qualquer lucro acima do valor da dívida aferido pelo perito da Justiça seria revertido para o Hopi Hari. 

Claro, o parque não quer vender o terreno, quer a posse e continuar seu negócio, visto que pagou a integralidade da dívida. O parecerista soma a isso e escreve “(existe uma) singularidade que reveste o caso: particularmente pelo excesso de cobrança comprovado pelo laudo da ação revisional (e pela) recusa injustificada de recebimento pela cessionária fiduciária Favi (...) da quantia suficiente à satisfação total do crédito e encargos, apurado pelo perito do Juízo”.

Prestar contas é de mútuo benefício para as partes e a expropriação do bem, seria uma solução em casos excepcionais.

Em busca da nulidade

Já João Biazi analisa se os depósitos judiciais feitos pelo Hopi Hari teriam sido aptos a purgar a mora (quitar a dívida). Ele afirma no documento que “sim, eles oferecem pagamento integral da dívida (...) O pedido adicional da Favi quanto aos honorários advocatícios não comporta justificativa (...) As partes nunca pactuaram qualquer remuneração de honorários advocatícios contratuais e não há qualquer registro – sequer inferência – sobre o valor de 30% sobre o valor total da dívida. O valor efetivamente devido à época foi demonstrado em esforço pericial confirmado pelo juízo de primeiro grau em sentença”.

Seria possível à Favi, então, requisitar em cartório a consolidação do bem imóvel dado em garantia fiduciária, como o fez? Segundo Biazi, “não. A notificação feita no dia 15 de agosto de 2017 não respeitou os preceitos normativos exigidos pelo artigo 26, §1º da Lei de Alienação Fiduciária de Bens Imóveis, uma vez que houve cobrança de valores excessivos e em nada relacionados com o conteúdo da avença garantida. Nesse sentido, deve ser reconhecida a nulidade da referida intimação”.

Segunda instância

Na segunda instância, contudo, o desembargador Décio Rodrigues, relator do recurso de apelação, ignorando as fortes argumentações do apelo e dos pareceres de especialistas, também não avançou nas questões essenciais do processo, como assegurar ao devedor fiduciante a faculdade de pagamento das prestações vencidas até a data da averbação da consolidação da propriedade no patrimônio do credor.

“Interpusemos recurso especial sobre a decisão colegiada, suspendendo novamente o procedimento de consolidação da propriedade, ou seja, impedindo a Favi tomar para si a área e a colocar, de repente, em leilão”, afirma Ferreira.

O recurso foi aceito agora, em 21 de junho, pelo presidente da Seção de Direito Privado, Heraldo de Oliveira Silva, remetendo o caso para o Superior Tribunal de Justiça, que irá avaliar o pedido de nulidade e eventual violação de lei.  

Valor acima do pedido

O advogado salienta que “foi depositado dinheiro no processo, que chega a mais de R$ 1,1 milhão, valor acima do que foi pedido inicialmente pela Favi, de R$ 884,8 mil”. O valor, acredita, tem de ser aceito. “O princípio da lei não é para o credor tomar para si o bem alienado, mas satisfazer o valor emprestado. A lei faculta pagar e quitar a dívida", afirma. Os advogados do parque acham estranhas, obscuras, as intenções da outra parte, mas acreditam que o STJ irá avaliar melhor a situação.

Sócios

A Favi então quer o terreno para colocá-lo a leilão? Segundo um dos donos da empresa, “vai depender”. “Essa ação não foi uma decisão minha, foi do meu sócio. Nem sei quem está tocando esse processo para confirmar o nome do advogado. Olha, é só isso, tá bom? Obrigado, bom dia”, disse Correa ao finalizar o contato com a reportagem. Ele assina a cessão de crédito com o Safra e a notificação para o Hopi Hari. 

Procurados, os advogados da Favi Empreendimentos não retornaram os contatos do Portal iG . No STJ, o Hopi Hari será defendido pelo escritório Barci de Moraes, em parceria com o escritório Cotrim Advogados Associados. 


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