A doação de plasma sanguíneo pode salvar muitas vidas e subsidiar a produção de remédios
Renato Araújo/Agência Brasília
A doação de plasma sanguíneo pode salvar muitas vidas e subsidiar a produção de remédios


Na quarta-feira (4), a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou, por 15 votos a 11, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 10/2022, conhecida como PEC do Plasma , que pretende dar permissão para empresas privadas atuem na produção e comercialização de hemoderivados , produtos à base de sangue humano. 

A proposta vem gerando muita polêmica. De um lado, as empresas do setor defendem a PEC como forma de evitar desperdício de plasma que pode servir para a fabricação de medicamentos; do outro, entidades e parlamentares ligadas à regulação da saúde e doação de sangue no país alertam para riscos envolvidos na aprovação da proposta.

Após a posição da CCJ, o texto de autoria do senador Nelsinho Trad (PSD-MS), será apreciado pelo Plenário. O projeto exige uma legislação específica para regulamentar a utilização de plasma humano para desenvolvimento de novas tecnologias e produção de medicamentos destinados ao Sistema Único de Saúde. 

O plasma sanguíneo é a parte líquida do sangue, que tem um tom amarelado quando são separadas as plaquetas, glóbulos vermelhos e brancos - células que ele tem a função de transportar pelo corpo todo. 

O plasma é majoritariamente composto por água, mas também contém proteínas como albumina e imunoglobulinas (anticorpos), além de vitaminas, sais, lipídios, hormônios e fatores de coagulação.

Atualmente, o sangue doado nos hemocentros de todo o país passam por um processo de separação do plasma nos laboratórios. Feito isso, uma parte do material biológico é destinada para fazer um concentrado de proteínas plasmáticas chamado crioprecipitado para uso do hemocentro. 


Outra fração é destinada aos estoques de sangue para transfusão dos hospitais. Uma terceira parte é enviada à indústria farmacêutica para produzir medicamentos de alto custo, que são oferecidos gratuitamente pelo SUS a 100% dos pacientes que necessitam deles. 

Hoje, cerca de 30% dos hemoderivados ofertados no sistema de saúde pública vêm do fracionamento realizado pelos hemocentros e bancos de sangue nacionais, e o restante é importado. 

De acordo com o Ministério da Saúde, a previsão é que a partir do ano de 2025, 80% da produção seja nacional após a conclusão da planta da Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás).

A maior parte da classe médica do país considera que a PEC pode provocar um retrocesso nas doações de sangue do país, levando o Brasil de volta a uma época em que havia uma espécie de comercialização das bolsas de sangue humano, causando desigualdade e queda na qualidade do sangue doado.

Na década de 1970, a venda do plasma humano era permitida no Brasil, atraindo pessoas vulneráveis. Esse fator, somado à falta de regulamentação, elevou o número de infecções transmitidas pela infusão de sangue contaminado.

Em 1988, a nova (e atual) Constituição Federal proibiu a comercialização de plasma, além de instituir uma política rigorosa de triagem do sangue doado. A PEC também é condenada pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) , pela  Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) .

O governo Lula é contrário à proposta e tem se articulado para tentar barrar o texto. No dia da votação do projeto na CCJ, o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, foi ao Senado “não só como ministro, mas como médico infectologista para fazer um apelo que não se aprove essa PEC”.


A senadora Zenaide Maia (PSD-RN), que também é médica, vem pedindo que seus colegas parlamentares que votem contra a PEC do Plasma alegando que as empresas que defendem a proposta “querem extrair o sangue do povo e vender a quem tiver dinheiro”, e que “sangue humano não é petróleo, não é soja, não é minério de ferro”.

A versão original da PEC dizia respeito a medidas para combater o desperdício de plasma com o objetivo de melhorar a eficiência das hemorredes e da Hemobras, onde se processa boa parte do plasma do país. 

“Eu mesma fui signatária da PEC original, assim como muitos outros parlamentares. O problema é que, na relatoria, deu-se uma mudança crucial no texto da PEC para permitir a comercialização do plasma. Isso foi no sentido contrário da versão original, que proibia expressamente esse tipo de negócio com o corpo humano”, esclarece Zenaide.

“Em 1988, a Constituição Federal proibiu taxativamente a compra e venda de partes do corpo humano, incluindo sangue. Esse tipo de mercado incentiva a violação dos princípios éticos mais básicos”. 

“As empresas, na busca pelo lucro, podem flexibilizar os requisitos sanitários para coleta de sangue. Os doadores, motivados pela necessidade e pela pobreza, podem ser levados a doar mesmo que não estejam em condições, colocando em risco a saúde da população”, afirma a parlamentar.

Zenaide argumenta que apesar da coleta em si não ser remunerada, ainda há uma série de riscos envolvidos na liberação da atuação da iniciativa privada na compra do plasma excedente o repasse ao consumidor final poderá ser deduzido do imposto de renda por ser um gasto médico. 

“Se o plasma excedente for exportado para viabilizar a importação de medicamentos hemoderivados, poderá faltar quando mais precisarmos. O resultado disso é a redução de recursos para a Saúde”, reitera a senadora. 


Além disso, conforme a parlamentar, permitir a comercialização do sangue vai criar uma concorrência desleal para os hemocentros do SUS e vai pôr fim ao seu fornecimento. Nesse sentido, colocá-lo à disposição no mercado internacional implica, segundo a senadora, tirá-lo do SUS. 

“Como médica, como gestora pública na área da Saúde, isso é algo com que eu não posso concordar, de forma alguma. Porque o que esse substitutivo da PEC significa nada mais é que a destruição das hemorredes e dos hemocentros do Brasil, e não o seu fortalecimento. E quem mais vai sofrer é o setor público, o SUS, cujos profissionais tanto orgulharam o país durante a pandemia”, assinala Zenaide. 

Para evitar desperdício de plasma, a senadora propõe investir na capacidade nacional para produção brasileira de hemoderivados. “A Hemobras hoje em dia dá lucro, é superavitária. É preciso expandir a capacidade dessa empresa. É necessário capilarizar a coleta móvel; no Rio Grande do Norte há um projeto muito interessante de ônibus de coleta, que eu apoio. É necessário qualificar os hemocentros, é necessário investir em logística.”

Já o autor da PEC, senador Nelsinho Trad, pontua que o Brasil importa medicamentos que precisam ser oportunizados a quem precisa e poderiam ser produzidos pela iniciativa privada em território nacional.

“Não existe remuneração no projeto relatado. Não existe remuneração para transplantes de órgãos. O sangue é um órgão, o plasma não é. (...) Eu sou a favor do remédio para quem precisa. Isso precisa ser resolvido no Brasil“, disse o parlamentar à Agência Senado. 

Relatora da PEC na CCJ, a senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB) afirma concordar que sangue não é para se comercializar, e ressalta que não existe qualquer previsão de remuneração para sangue e plasma doados.

“Quando falamos em abrir para a iniciativa privada, para auxiliar, estamos falando em medicamentos para o SUS, estamos ajudando o cidadão. (...) Não vai cair a doação de sangue, porque nós vamos discutir a lei regulamentar. (...) Derivados de sangue poderiam salvar vidas, mas vão para o lixo”, disse a senadora.

Por outro lado, defensores da proposta acreditam que a PEC tem o potencial de aumentar a disponibilidade de hemoderivados - que são essenciais para pacientes com doenças como hemofilia, câncer, aids, doenças renais e imunodeficiências - reduzindo os problemas de distribuição desses recursos por falta de recursos para os hemocentros estaduais e barateando os hemoderivados.

A Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS), que representa as empresas do setor privado, a PEC 10/2022 possibilitaria à indústria atuar na coleta, processamento, disponibilização e distribuição de hemoderivados e não traria riscos “à doação de sangue ou à solidariedade da população brasileira, uma vez que a PEC do Plasma não tem essa intenção”.

A nota da associação empresarial alega que “ao invés de o governo adquirir hemoderivados a preços elevados do exterior, a iniciativa privada oferecerá estes medicamentos a preços mais acessíveis”, e que “Isso é um compromisso importante da iniciativa privada com a sociedade”.

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