Por Rafael Oliveira, Anna Beatriz Anjos (Agência Pública)
O projeto de lei (PL) aprovado na Câmara que tenta fincar um marco temporal na legislação brasileira vai muito além de “apenas” estabelecer 5 de outubro de 1988 como data em que os indígenas deveriam estar ocupando suas terras para que elas sejam demarcadas. De volta à pauta, agora no Senado Federal, o PL traz uma série de outros ataques aos direitos territoriais indígenas, na visão de indígenas e especialistas ouvidos pela Agência Pública .
“Inconstitucional, inaplicável, não deveria nem existir uma proposta como essa no Congresso Nacional, que se diz a casa do povo. Afeta a garantia de sobrevivência física, cultural, tradicional e o usufruto exclusivo dos povos nos seus territórios. É muito danoso à sobrevivência”, resume Kleber Karipuna, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Boa parte do projeto é inspirado nas condicionantes que o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu para o caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, de 2009, a despeito do tribunal já ter decidido em mais de uma ocasião que as determinações daquele caso específico não são aplicáveis para todas as terras indígenas. Entre os pontos apontados como mais por indígenas e especialistas ouvidos pela Agência Pública estão a proibição da ampliação de terras já demarcadas e a relativização do usufruto exclusivo dos indígenas.
O projeto permite que obras relacionadas à “política de defesa e soberania nacional” sejam feitas mesmo sem consulta aos povos afetados. O PL ainda tenta emplacar a permissão para que não indígenas atuem dentro dos territórios em parcerias, enfraquece a proteção aos povos isolados e institui indenização para os ocupantes não indígenas que tenham título de terra.
No Senado, diferentemente do que ocorreu na casa comandada por Arthur Lira – que pôs o texto em votação em regime de urgência –, o projeto deve ter tramitação normal, passando pelas comissões pertinentes, conforme promessa feita pelo presidente Rodrigo Pacheco . A primeira etapa de discussão está marcada para ter início nesta quarta-feira (15), na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) e conta com parecer favorável da relatora, Soraya Thronicke (Podemos-MS) . Aprovado na Câmara como PL 490/07, o projeto tramita como PL 2.903/23 no Senado.
Paralelamente ao andamento do projeto no Congresso, os povos indígenas e os ruralistas também aguardam, em lados opostos, o desfecho do julgamento de repercussão geral sobre o tema no STF. Os ministros do tribunal definirão, de uma vez por todas, se a tese do Marco Temporal é constitucional e aplicável a todos os casos.
Por enquanto, o placar está favorável aos indígenas – votaram contra o Marco Temporal o relator Edson Fachin e Alexandre de Moraes , enquanto Nunes Marques divergiu. Moraes, o último a votar até o momento, levantou uma nova possibilidade, falando em indenização pelo valor da terra nua aos não indígenas que possuam título de propriedade. O julgamento está parado após pedido de vista de André Mendonça, que prometeu devolver o caso ao plenário antes da aposentadoria de Rosa Weber, que ocorrerá em outubro.
Nesta reportagem, a Agência Pública passa por cada um dos pontos polêmicos aprovados na Câmara dos Deputados , mostrando os impactos que o projeto de lei pode gerar mesmo se o STF decidir derrubar a tese do marco temporal.
O projeto estabelece que só podem ser demarcadas as terras em que havia ocupação tradicional de indígenas na data de promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988.
A Constituição não estabelece claramente uma data na qual os indígenas deveriam estar ocupando as terras para elas serem demarcadas. O STF está atualmente discutindo se a tese do Marco Temporal – aplicada em um caso específico julgado no tribunal em 2019 – vale para todos os casos.
Não há um valor exato de quantas terras indígenas poderiam ser afetadas, mas algumas dezenas de processos demarcatórios já foram paralisados judicialmente com base na tese. Um exemplo de povo que será especialmente afetado são os Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. Expulsos de boa parte de suas terras tradicionalmente ocupadas ao longo do século 20, os Guarani e Kaiowá promoveram uma série de retomadas de seus territórios no período pós-Constituição. Caso o Marco Temporal passe a ser a regra, eles não terão direito às terras retomadas depois de 1988.
O projeto estabelece que o usufruto dos indígenas não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional, como intervenções militares, expansão da malha viária e exploração de alternativas energéticas estratégicas. Estabelece também que a implementação será feita independentemente de consulta às comunidades envolvidas ou à Funai. O PL estabelece que o poder público tem permissão para instalar equipamentos e construções necessárias à prestação de serviços públicos.
A Constituição estabelece que as terras tradicionalmente ocupadas são de usufruto exclusivo dos indígenas. E que o aproveitamento dos recursos hídricos e a pesquisa e lavra de minérios em terras indígenas só podem ocorrer com autorização do Congresso Nacional. Além disso, o Brasil ratificou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que estabelece aos indígenas e demais comunidades tradicionais o direito à consulta livre, prévia e informada em relação às decisões que afetem diretamente seus povos.
Não há estimativa de quantas terras seriam afetadas por este dispositivo, mas um levantamento feito pelo Instituto Socioambiental (ISA) lista ao menos 397 terras indígenas ameaçadas por obras de infraestrutura, como ferrovias, linhas de transmissão, usinas hidrelétricas, portos e rodovias. Boa parte, porém não se enquadra no conceito de “política de defesa e soberania nacional” estabelecido pelo projeto de lei. Além disso, parte considerável das terras citadas no levantamento está na zona de influência das obras e não tem incidência direta da obra em seu território.
Segundo levantamento do InfoAmazonia , há atualmente 111,6 mil km² de terras indígenas onde há requerimentos de mineração, apenas na Amazônia Legal. Parte dessa área poderia ser autorizada com base no PL.
Rafael Modesto, advogado do Cimi: “Pode abrir margem para muita coisa perigosa, como doenças e epidemias. Os indígenas não são biologicamente preparados para determinada exposição, então o ingresso com mais facilidade em terras indígenas leva risco à saúde dos indígenas. Também abre margem para dizer que o Estado brasileiro precisa ampliar a produção de commodities ou de alimentos ou precisa de divisas em função das exportações pelo agronegócio e abrir as terras indígenas, por interesse público, para produção de grãos.”
Kleber Karipuna, coordenador da Apib: “Empreendimentos que são construídos próximos ou dentro de terras indígenas afetam substancialmente a cultura, a tradição e até mesmo a sobrevivência desses povos.”
O projeto veda a possibilidade de ampliação de terras indígenas já demarcadas. Não há nenhum impedimento legal para que uma terra indígena seja ampliada, desde que o reestudo passe pelos procedimentos usuais do processo de demarcação. Alguns reestudos, porém, foram barrados por decisões judiciais em diferentes instâncias.
Os principais afetados serão povos que tiveram suas terras demarcadas (ou seus processos de demarcação iniciados) antes da Constituição de 1988 , que só então estabeleceu critérios mais claros. É o caso dos Myky (MT), que tiveram territórios sagrados deixados de fora da demarcação da TI Menkü, de 1987. Eles tentam adicionar 1.460 km² ao território, que atualmente tem 470 km². O governo Dilma aprovou o estudo de identificação da ampliação do território em 2012, mas o governo Bolsonaro anulou a identificação em 2022.
Outro exemplo são os Guarani da TI Jaraguá (SP), a menor terra indígena do país. Localizado na zona oeste da capital São Paulo, o território tem apenas 0,017 km², menos de dois campos de futebol. O território foi demarcado em 1987. Os Guarani pleiteiam uma ampliação de 5,3 km², que já foi declarada e aguarda decreto de homologação.
Suruí Pataxó, cacique e presidente do Conselho de Caciques e Lideranças da Barra Velha: “Onde nós estamos aqui [a área homologada] já tem muita gente. A gente não vai largar os parentes para morar em beira de pista e viver mendigando.”
Kleber Karipuna, coordenador da Apib: “A população indígena não é estática. O Censo inclusive demonstrou o crescimento dessa população. Uma terra indígena demarcada com o limite muito pequeno e que historicamente era muito maior precisa de ampliação. O PL vai na contramão da garantia dessa sobrevivência física e cultural desses povos.”
O projeto estabelece a possibilidade de questionamentos em relação à demarcação em qualquer fase do processo. Atualmente, o período para contestações se inicia na abertura do processo demarcatório e vai até 90 dias depois da publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) pela Funai. Nas fases seguintes, não é possível questionar a demarcação pela via administrativa.
Todos os povos com processo de demarcação em andamento podem ser afetados, já que o dispositivo burocratiza ainda mais o processo demarcatório. Pode afetar inclusive aqueles que já superaram a fase do contraditório e que estão aguardando portaria declaratória ou decreto de homologação.
Juliana Batista, advogada do ISA: “Em nenhum processo administrativo o interessado pode questionar o processo a qualquer momento. Isso não existe na lógica administrativa. Se você tiver respondendo a um processo disciplinar, você vai ter um prazo para fazer sua defesa. Você tem um prazo para questionar uma multa no Detran. Questionar a todo tempo inviabiliza a marcha para frente do processo administrativo.“
O projeto estabelece que não haverá qualquer limitação ao uso e gozo aos não indígenas que exerçam posse sobre uma área antes da conclusão do processo demarcatório e do pagamento das indenizações de boa-fé. Além disso, o projeto estabelece que são consideradas de boa-fé e devem ser passíveis de indenização as benfeitorias realizadas até a conclusão do processo de demarcação.
Atualmente, são consideradas nulas e de má-fé as ocupações (e, consequentemente, as benfeitorias derivadas) que ocorram após a publicação de portaria declaratória pelo Ministério da Justiça ou que, antes disso, tenham ocorrido a despeito do ocupante saber que se tratava de terra indígena.
Caso o dispositivo seja aprovado, pode haver uma escalada nas invasões de terras indígenas que estão em processo de demarcação, já que ele amplia as possibilidades de uso e de indenização de benfeitorias.
Juliana Batista, advogada do ISA: “A constituição garante aos indígenas o direito originário às terras que eles tradicionalmente ocupam. O que que isso significa? Que o direito dos indígenas é anterior a qualquer direito. Todos os direitos posteriores são considerados pela Constituição nulos e extintos. Com essa mudança, o projeto quer dar uma prioridade para o invasor daquela terra, porque a maior parte das pessoas que estão em terras indígenas hoje não são pessoas que têm um título legítimo.”
O projeto estabelece que, em caso de justo título de posse ou propriedade em área indígena, a desocupação será indenizável, em razão do erro do Estado. A Constituição estabelece que “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras” indígenas. Só são indenizáveis, atualmente, as benfeitorias consideradas de boa-fé, não existindo indenização pela desocupação em si.
A medida pode afetar em especial povos que habitam regiões conflituosas e com alto número de ocupantes não indígenas questionando a demarcação, já que a obrigatoriedade de pagamento de indenização cria um entrave burocrático e financeiro para o andamento das demarcações.
Kleber Karipuna, coordenador da Apib: “Isso está muito relacionado a esse debate no STF, do julgamento do Marco Temporal, e o PL abre brechas para essa questão da indenização por terra nua. A gente rechaça completamente essa proposta.”
O projeto estabelece que os processos de demarcação ainda não concluídos serão adequados ao disposto na lei. Também estabelece que é nula a demarcação que não atenda os preceitos da lei em questão. As centenas de processos demarcatórios já em andamento seguem o estabelecido na Constituição e na Lei 1.775/1996, entre outras normas infralegais.
Todos os processos de demarcação em andamento podem ser afetados, inclusive aqueles que aguardam apenas o registro ou o decreto de homologação, já que terão que se adequar à nova lei e se abrirá espaço para novas contestações. Em última instância, pode possibilitar até mesmo o questionamento de demarcações já concluídas.
Rafael Modesto, advogado do Cimi: “Se você cria uma lei dizendo que o marco temporal é a referência para demarcação de terra indígena, com base nessa lei, o fazendeiro vai para justiça e diz ‘olha, está demarcado, mas essa demarcação não obedeceu ao marco temporal’. Quem vai dizer se a área é indígena ou não vai ser o Judiciário.”
O projeto estabelece que, em caso de “alteração dos traços culturais” ou “outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo” que demonstrem que a área indígena reservada não é essencial para a sobrevivência física e cultural para aquele povo, a União poderá retomar a área reservada, destinando-a para a reforma agrária ou outra destinação de interesse público. O dispositivo se aplica apenas a reservas indígenas, que não seguem o mesmo rito do processo demarcatório das terras indígenas tradicionalmente ocupadas.
Não há nenhuma previsão legal de retomada de terras reservadas a indígenas. Todas as reservas indígenas podem ser afetadas pelo dispositivo, que não deixa claro o que seria “alteração dos traços culturais”, abrindo margem para questionamentos sobre a identidade de indígenas tidos como “assimilados”.
Rafael Modesto, advogado do Cimi: “Isso é com base na legislação anterior a de 1988, que é aquela do regime tutelar, do integracionismo, do assimilacionismo. Por exemplo, o Estado fez uma reserva para os Kaingang. ‘Ah, os Kaingang agora têm carro, têm celular, então eles perderam os traços culturais’. Isso é preconceito, negacionismo cultural, racismo. Essa previsão do projeto de lei é extremamente nociva, é um desrespeito aos povos indígenas.”
O projeto estabelece a possibilidade de cooperação e de contratação de terceiros não indígenas no exercício de atividades econômicas em terras indígenas. Também passa a permitir o cultivo de transgênicos em terras indígenas.
De acordo com a Constituição, as terras indígenas são de usufruto exclusivo dos povos indígenas que nela habitam. O Estatuto do Índio também veda as práticas agropecuárias ou extrativistas por não indígenas dentro dos territórios.
Há casos de “parcerias agrícolas” entre indígenas e não indígenas, mas a prática não é regulamentada. O governo Bolsonaro editou uma instrução normativa relacionada ao licenciamento de atividades agropecuárias em terras indígenas que validava as “organizações mistas” entre indígenas e não indígenas, mas a norma foi revogada pelo governo Lula.
Além disso, a lei atualmente proíbe o cultivo de transgênicos em áreas indígenas. Todas as terras indígenas, inclusive as já demarcadas, podem ser afetadas em caso de aprovação da medida, que abre margem para pressões de grupos do agronegócio nos territórios indígenas. Também pode ocasionar aumento do desmatamento em territórios indígenas, considerados fundamentais no combate às mudanças climáticas. A permissão para o cultivo de transgênicos é outro sinal da ofensiva do agronegócio sobre as áreas, podendo gerar impactos socioambientais na agricultura multidiversa adotada por muitos povos, bem como impactos ambientais.
Juliana Batista, advogada do ISA: “Você pega uma entidade não indígena que faz um consórcio com uma entidade indígena para plantar soja. Isso vai levar vários trabalhadores para dentro dessa área. Isso vai fazer com que eles tenham que construir uma estrutura dentro dessa terra para esses trabalhadores. Como que você tira essas pessoas de lá depois?
Rafael Modesto, advogado do Cimi: "Se você joga isso [soja geneticamente modificada, por exemplo] em uma terra indígena que é preservada, com recursos naturais que são necessários à sobrevivência do povo, você vai começar a criar um desequilíbrio ecológico. Fuga de animais, morte de animais, de peixes por intoxicação.”
O projeto estabelece que deve ser evitado ao máximo contato com povos indígenas isolados, “salvo para prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública”.
O Estado brasileiro vem seguindo uma política de não contato há mais de três décadas. A política é embasada especialmente em tratados internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU , além de normas infralegais internas.
O projeto não deixa claro o que seria uma “ação estatal de utilidade pública”, abrindo margem para contatos com quaisquer povos isolados, que são especialmente vulneráveis a doenças infectocontagiosas.
Juliana Batista, advogada do ISA: “O que é uma ação estatal de utilidade pública? Pode ser qualquer coisa. E aí isso acaba com a política de não contato. Até entidades privadas poderiam fazer contato forçado com esses indígenas. E isso é uma ameaça real à sobrevivência desses grupos, porque os povos isolados não têm a mesma memória imunológica que nós que vivemos na cidade têm.”
Kleber Karipuna, coordenador executivo da APIB: “O PL deixa os povos em isolamento voluntário vulneráveis ao permitir a forçação de um contato com esses povos, na contramão do avanço que a política de proteção desses povos teve nos últimos 30 anos. Anteriormente, a política do Estado brasileiro era de forçar o contato, e a história já nos mostrou que esse tipo de política ajudou a dizimar alguns povos.”
*Esta reportagem faz parte do especial Emergência Climática, que investiga as violações socioambientais decorrentes das atividades emissoras de carbono – da pecuária à geração de energia. A cobertura completa está no site do projeto.