Quais as consequências da política pró-armas do governo Bolsonaro?

Especialistas vêm observando um aumento na divulgação de notícias sobre desentendimentos que acabam em morte por arma de fogo, bem como acidentes

Foto: Pixabay
Número de CACs no Brasil já é maior do que o de policiais militares e homens das Forças Armadas

A agência de notícias Reuters obteve, nesta semana, acesso a documentos inéditos que mostram uma resistência da PF (Polícia Federal) às políticas pró-armamento defendidas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), com advertências severas emitidas ao Congresso. Em pelo menos oito posições institucionais formais, entregues ao poder legislativo, os policiais federais afirmaram que as propostas tornariam mais difícil garantir a segurança no país, com mais homicídios em números absolutos no mundo.

"Consideramos todas essas mudanças um retrocesso na política pública de controle de armas de fogo prevista na legislação atual", escreveu a PF em dezembro de 2019 aos parlamentares depois que o Projeto de Lei 3723, o mais recente de autoria do Executivo para afrouxar o controle de armas, passou na Câmara dos Deputados.

Se aprovado pelos senadores, escreveu a polícia, o projeto "resultará, sem dúvida, no retorno da situação caótica no país de excessiva oferta de armas de fogo, inclusive ilegais, em circulação, podendo tornar muito piores os índices de criminalidade."

Segundo a pesquisadora em segurança pública Isabel Figueiredo, consultora do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), ainda não é possível mensurar com precisão os impactos das políticas pró-armamento do governo Bolsonaro nos índices de violência e mortes por arma de fogo no Brasil. Mas, especialistas vêm observando que houve um aumento na divulgação de notícias sobre desentendimentos que acabam em morte por arma de fogo, bem como acidentes que, muitas vezes, também resultam em óbito.

Existe um consenso internacional, baseado em pesquisas, que mostra relação de causalidade entre maior circulação de armas e maior ocorrência das três seguintes situações: brigas tomando dimensões maiores na presença de alguém armado; armas legais migrando para a criminalidade (porque são vendidas, perdidas ou roubadas); e suicídios e acidentes.

"No caso do que está acontecendo no Brasil, em especial, uma questão que gera muita preocupação é o aumento significativo de pessoas registradas como CAC no Exército", afirma Isabel. A sigla, que reúne colecionadores de armas, atiradores esportivos e caçadores, cresceu 474% em meio à política pró-armamento do governo Bolsonaro, aponta um levantamento do FBSP. Passou de 117.467, em 2018, para 673.818 até 1º de julho deste ano. O número já é maior do que os 406 mil policiais militares que atuam em todo o país e os 360 mil homens das Forças Armadas. 

"Este é um fenômeno que vem sendo observado desde 2017. Os especialistas falavam: 'O número de CACs está aumentando, tem algo de errado aí'. E o Exército respondia que não, que estava tudo normal", diz. 

De acordo com a especialista, a PF já estava antenada, desde 2017, ao movimento de pessoas que fingem ser colecionadores, atiradores esportivos ou caçadores para obter licença de arma, mas isso era algo que vinha acontecendo a passos lentos, porque a legislação era mais dura. A partir de 2019, com todas as flexibilizações dos decretos do presidente Bolsonaro, o movimento ganhou muito mais intensidade.

Isabel afirma que há uma fiscalização muito branda por parte do Exército. Nesta semana, por exemplo, a mídia noticiou que pessoas envolvidas com o crime organizado estão conseguindo se registrar como CAC e comprar mais armas mais baratas . Os custos de uma arma no mercado clandestino chegam a ser até o triplo de um exemplar semelhante comprado com nota fiscal.

"Em sua defesa, o Exército responde, em nota, que o sujeito havia dado uma declaração falsa e, por isso, o registro de CAC havia sido concedido a ele. Ou seja, não houve nenhum tipo de fiscalização, como se a corporação não tivesse, de fato, nenhum comprometimento com isso", diz.


Análise deturpada

Foto: Antonio Cruz / Agência Brasil
Bolsonaro atribuiu queda de homicídios no país à política pró-armamentista de seu governo


Em fevereiro deste ano, a FBSP divulgou dados que mostraram uma queda de 7% dos assassinatos no Brasil em 2021, o menor índice desde 2007. No ano passado, foram registradas 41,1 mil mortes violentas na modalidade dolosa (quando há a intenção de matar), 3 mil a menos do que em 2020. À época, Bolsonaro atribuiu, sem qualquer base científica, os números às políticas pró-armamentistas de seu governo. Mas, segundo a especialista, não há qualquer indício de que haja relação de causalidade entre as duas coisas.

"A lógica do Bolsonaro é falar o que ele acredita ser verdade, o que ele quer que seja verdade, mas nada nunca baseado em dados. O homicídio é um fenômeno multicausal", afirma. De acordo com Isabel, há uma série de estudos que vem sendo feitos para descobrir o que estaria por trás desses números.

Um deles, por exemplo, atribui a queda de homicídios violentos no país a uma questão demográfica. A vítima preferencial de homicídios estaria em redução, o que resultaria em menos homicídios, de forma geral.

Outro estudo trabalha a questão das facções. No Ceará, por exemplo, onde há uma concentração de facções criminosas, os anos de 2016 e 2017 foram muito marcados pelas disputas de territórios entre facções e, quando a situação apazigou, isso teria refletido na queda de mortes violentas no país, tamanha era a violência no estado.

Um terceiro estudo, ainda, sugere que os dados animadores são resultado de políticas públicas um pouco mais consistentes que vêm sendo aplicadas nos últimos anos em alguns estados brasileiros, como o treinamento humanizado da polícia. Quando uma política pública é implementada, explica a especialista, os efeitos dela não começam a ser sentidos de imediato, mas cerca de dois a três anos depois.

"Não há estudo que embase a fala de Bolsonaro, o que existe é o desejo dele de que isso seja verdade. E, mais do que o desejo, há também a ausência da possibilidade de outro discurso", diz.

"Estamos falando de um presidente que se elege muito em cima da pauta da segurança pública, com frases de efeito, do tipo 'um povo armado jamais será escravizado'. Mas, em termos práticos, o que ele fez, em termos de segurança pública, foi liberar as armas e tentar, por duas vezes, emplacar excludente de ilicitude", completa.

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