Enquanto se multiplicam os registros de caçador, atirador e colecionador (CAC) e de clubes de tiro no Brasil, a popularização das impressoras 3D fez surgir uma mania, que se espalha por grupos armamentistas, através de aplicativos de troca de mensagens por celular. Nesses apps, é possível acessar, com facilidade, grupos que estimulam a fabricação caseira de armas de fogo, inclusive com a distribuição de tutoriais. A prática ocorre à margem da lei, já que armas só podem ser legalmente produzidas e utilizadas com o devido controle de quantidade, tipo e qualidade.
A tecnologia 3D permite a produção de objetos pela impressão de sucessivas camadas de material. No caso das armas, que podem ser fabricadas do zero, a prática já se tornou comum no exterior, e chegou ao país. Um armamento desse tipo foi apreendido com células neonazistas, uma delas alvo de uma operação policial em Santa Catarina.
Em abril, a polícia catarinense apreendeu a impressora 3D e uma arma fabricada pela máquina com um grupo extremista em São Miguel do Oeste. Foram encontradas e recolhidas no local uma bandeira nazista e outra do Kekistão (nação fictícia criada em fóruns de extrema-direita na internet), além de estojos de projéteis de calibre 9mm, um carregador, manuais de criação de armas em impressão 3D e drogas.
Os tutoriais que ensinam a produzir e a montar esse tipo de arma têm se disseminado livremente pelo Telegram, aplicativo de troca de mensagens concorrente do WhatsApp. Adeptos dessa tendência compartilham em vídeo e imagens suas experiências com as armas recém-produzidas.
Caseira e ilegal
A proliferação sem freios desses produtos preocupa especialistas em segurança pública. É preciso autorização concedida pela Polícia Federal ou pelo Exército para usar uma arma de fogo. Produzi-las em casa fora do circuito de fiscalização, afrouxado durante o governo de Jair Bolsonaro, é ilegal.
O modelo mais célebre é o FGC-9 (sigla para fuck the gun control — “f... o controle de armas”, em português), uma carabina semiautomática. Feita em impressão 3D, foi lançada no início de 2020 e projetada por um designer europeu de pseudônimo JStark1809, cultuado em grupos armamentistas. Um desses grupos do Telegram tem como lema “jstark1809, seu nome será lembrado”.
Um dos maiores canais brasileiros sobre o assunto, com 1.224 inscritos, tem publicação diária de tutoriais e documentos sobre fabricação caseira de armas. Teorias da conspiração de extrema-direita circulam constantemente no canal. Outro foi criado em 22 de março e conta com 748 membros.
Especialista em controle de armas e segurança e gerente do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani diz que o temor não é que esse tipo de armamento reforce grandes quadrilhas, que costumam ter capacidade financeira para adquirir melhores armas, mas que seja usado por grupos menores ou indivíduos com objetivos pontuais.
Por serem feitas de plástico, essas armas têm resistência menor para aguentar a combustão ocasionada no disparo. Portanto, não oferecem muita vantagem para grupos criminosos que trocam tiros com a polícia ou organizações que praticam o “novo cangaço”, de acordo com Langeani. Porém, essas armas são letais.
"Para adolescentes que foram radicalizados e têm a intenção de cometer um atentado, esse tipo de arma é perigoso", diz.
A ideologia de “distribuir defesa” para civis é exposta numa publicação compartilhada pelo administrador de um dos maiores chats sobre o assunto no Telegram, em maio. Abaixo de um vídeo em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) discursa que vai trocar “clubes de tiro por clubes de livro” em seu eventual novo governo, o criador do grupo promete ajudar as pessoas a fazerem “suas próprias armas em casa”.
“Esse cara pretende centralizar as armas de fogo. Mas sabemos que se ele vencer só vai aumentar o ódio contra ele. As pessoas vão buscar cada vez mais meios para sair das garras do Estado. A Defesa Distribuída veio exatamente para isso. (As pessoas) vão fazer pistolas, metralhadoras, AR-15, lança-granadas. Não dependemos mais de Lula ou Bolsonaro. Isso é só o início”, afirma um integrante do grupo.
Procurado, o Ministério da Justiça e Segurança Pública informou que a Polícia Federal responderia pelo assunto. A PF, por sua vez, pediu que o questionamento fosse feito à pasta. A Polícia Federal também não respondeu que medidas está tomando para investigar ou combater a proliferação dessas armas clandestinas ou quantas delas já foram apreendidas no país.
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