O desembargador William Douglas, do TRF2
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O desembargador William Douglas, do TRF2

Em 2020 participei de debate sobre a liberdade de expressão e liberdade religiosa na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ. Na oportunidade, discutindo o caso Netflix e a modificação da figura histórica de Jesus Cristo, defendi que o direito à liberdade de expressão não seria absoluto e, por isso, não poderia permitir o escarnecimento de valores religiosos, protegidos pela lei e caros à nossa sociedade, que é predominantemente cristã.

Tanto houve ofensa aos cristãos que um representante legal da Netflix na Espanha reconheceu em sua declaração perante um juiz em Madri que o filme "A Primeira Tentação de Cristo", que apresenta Jesus como um homossexual e a Virgem Maria como uma prostituta, é ofensivo para os cristãos.

Temos visto nos meios de comunicação que o debate sobre liberdade de expressão, minorias, direita e esquerda, se intensificou nos últimos tempos, afetando a política, a indústria do entretenimento e das artes, nossas famílias e o nosso dia a dia.

Nesta senda, recentes casos polêmicos que inflamaram o debate sobre liberdade de expressão e a retaliação da patrulha da agenda ideológica identitária têm despertado atenção de todos, pois envolveram personalidades famosas.

A cantora Adele foi vítima de cancelamento na internet por ter dito que tinha orgulho de ser mulher: “Amo ser uma artista feminina”. A artista está sendo chamada de “transfóbica” pois esse comentário estaria afetando os grupos “não binários”. Como expõe a matéria da Oeste, militantes da causa trans pediram ainda boicote ao trabalho da artista em virtude do comentário.

Em outro episódio, a tenista nove vezes campeã de Wimbledon e ícone da causa gay Martina Navratilova expressou sua opinião crítica contra a entrada de mulheres trans em competições femininas porque teriam vantagem: “É insano e desleal. Fico feliz em falar com mulheres trans da forma que elas preferirem, mas eu não gostaria de competir contra elas. Não seria justo”. A reação foi imediata, como da ONG Trans Actual britânica: "Estamos devastados por descobrir que Martina Navratilova é transfóbica”.

No Brasil a atleta de vôlei Ana Paula criticou a entrada de Tiffany Abreu no quadro de atletas do vôlei feminino nacional: “Bronze is the new gold para as mulheres”; “É hora de protegermos uma nova geração de jovens atletas incrivelmente talentosas (...) Não podemos mais ignorar o assédio que estão sofrendo e o espaço que estão sendo obrigadas a ceder ─ caladas (...)”; “"Sei que a maioria está do meu lado, elas não falam por medo até de perder patrocínio".

Ou seja, quem ousa exercer sua liberdade de expressão e de crítica vira alvo de agressões verbais e cancelamentos difamatórios por grupos identitários que se arrogam na posição de controladores e censores do discurso alheio. Trata-se da colocação do outro como “inimigo”. Essa adesão compulsória à crítica integral identitária implica no risco de rotulação ou etiquetamento das pessoas como racistas, machistas, misóginos, ou fascistas.

A Constituição garante à livre manifestação do pensamento (art. 5º, XIV), sendo vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística (art. 220, §2º).

Aqui, vale lembrar as palavras de Bottini: “Abrigar a liberdade de expressão significa tolerar o diferente, a ideia oposta, o argumento contrário, o que nem sempre é agradável, ainda mais em contextos de polarização exacerbada, em que cada polo ideológico defende suas posições como barricadas”.

Ouvir críticas é o preço que se paga por estar vivo e em uma democracia. É óbvio que a educação é a resposta para minimizar que ofensas ocorram, mas, querer calar quem pensa diferente, quando apenas se expressa uma opinião contrária, sem conotação caluniosa, injuriosa ou difamatória, é censura. O prisma ideológico ou político não pode ser relativizado para aplicar tratamento diverso para uns e outros.  

Todas essas questões tendem e desaguar no Poder Judiciário, o qual não pode permitir que seus membros repitam as mesmas falhas que a sociedade vem cometendo. O primeiro dever dos magistrados é decidir de forma isonômica para todos, sem deixar que suas opiniões e preferências ideologicas resultem em tratamento desigual para casos análogos.

Como levanta o jurista Ives Gandra Martins: Liberdade de expressão não pode servir para uns, mas não para outros; o Judiciário não pode permitir certas contradições, vale dizer, para alguns são atos antidemocráticos, para outros liberdade de expressão e de humor: “Em uma democracia, as opiniões têm de ser expressas livremente. Não havendo atentados contra a democracia, mas apenas maneiras de pensar diferentes, não pode haver censura”.

Já afirmamos em outro artigo de nossa autoria: dois pesos e duas medidas, eis nosso maior drama. Muitos, numa leitura ruim do paradoxo da tolerância, idolatram a intolerância. Aqueles que pedem respeito, desrespeitam. Multiplica-se o "ódio do bem". Usam o "lugar de fala" não de forma inclusiva, mas para amordaçar o diferente. Professores universitários incitam seus alunos a impedir a fala de quem pensa diferente, o que é um absurdo. Precisamos corrigir estes desvios civilizatórios.

Nesse cenário, é preciso insistir e professar velhas lições: o fato de alguém discordar de nós não torna essa pessoa necessariamente má e não oblitera os direitos que a lei lhe assegura. Igualmente, dizer "eu gosto de maçã" não pode ser visto como ofensa a quem prefere pêras.

Hoje, muitos jovens, deseducados por professores irresponsáveis, defendem até a morte o inexistente direito de calar quem eles não concordam. A polarização vem cobrando de seus participantes adesão integral e acrítica a todo discurso "anti" o outro lado.

Recentemente, tivemos um novo degrau do absurdo, no qual perguntas retóricas foram vistas como "ameaças". Trata-se do caso envolvendo a jornalista Juliana Shwartz Dal Piva e o advogado Frederick Wassef, no qual se buscou criminalizar a formulação de perguntas. O caso é quase bizarro, pois a lógica das perguntas era saber por qual razão a jornalista era de esquerda já que se estivesse na China poderia ser morta por expor suas opiniões ao passo que isso não ocorre no Brasil. Mesmo assim, o advogado foi processado.

Felizmente, neste caso concreto o juiz decidiu de forma acertada, analisando as mensagens das partes envolvidas, afastou o tipo da ameaça. O advogado usou de retórica para pontuar à jornalista que em uma nação comunista ou socialista não existe liberdade de imprensa e de expressão e que é, portanto, um contrasenso um jornalista defender tais regimes. Vale ressaltar o seguinte trecho da sentença: “(...) o réu realizou perguntas expressando sua opinião acerca do sistema político comunista. Logo, não representou qualquer abuso, culposo ou doloso, na manifestação de pensamento, mas sim exercício regular de um direito fundamental assegurado pela Constituição Federal. Inclusive, não há qualquer intimidação à autora na parte em que o réu diz que se ela estivesse em um país que tenha o comunismo por ideologia predominante em seu governo, desapareceria se fizesse, profissionalmente, o mesmo que faz no Brasil. Isso, pois o réu exerce seu direito de expressar sua opinião sobre determinados assuntos. E, em nenhum momento, fica implícito ou explícito que ele a ameaça, justamente por dizer, em seguida, que em território brasileiro não ocorre esse tipo de comportamento como nos demais países citados por ele. Logo, entende-se que o réu não pensa que a autora será perseguida por exercer sua profissão no Brasil.”

A decisão do juiz foi tecnicamente correta e renova nossa confiança em que o Judiciário interrompa essa visão extremamente perversa na qual tudo passa a ser criminalizado.

Hoje, qualquer discordância é rotulada como "discurso de ódio" mesmo quando não contenha qualquer proposta de violência. Qualquer discussão com um integrante de "minorias" se torna perigosa, por trazer o risco de rotulação como machista, racista, homofóbico etc, o que reduz o espaço do diálogo e da construção de pautas comuns.

Emitir opinião ou conversar não pode virar crime, discordar não é delito e apenas perguntar, além de não ofender, não é crime. Precisamos retomar o diálogo como ponte e fonte de pacificação e não como atividade passível de judicialização, a qual, no mais das vezes tem sido temerária. Parabéns ao magistrado que repôs as indagações retóricas ao lugar que lhes cabem. Torcemos para que essa interrupção do amordaçamento do diálogo se repita cada vez mais.

A criminalização do discurso e da retórica é violação da liberdade de pensamento e de sua expressão. Além disso, reforça a burrice das bolhas e a construção de muros, em um país que precisa celebrar a diversidade e, através do dialogo, construir mais pontes entre os que pensam de modo diferente.

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