O indigenista Bruno Pereira (ao centro) em missão realizada pela Funai , no Vale do Javari
Divulgação/Funai/Arquivo
O indigenista Bruno Pereira (ao centro) em missão realizada pela Funai , no Vale do Javari

Bruno Pereira, indigenista desaparecido há uma semana no Vale do Javari, no Amazonas, com o jornalista inglês Dom Phillips, já havia denunciado o principal suspeito de envolvimento no caso, Amarildo da Costa de Oliveira, conhecido como Pelado. que teve a prisão temporária decretada na quinta-feira. A informação consta em relatórios obtidos pelo GLOBO sobre inspeções feitas na Terra Indígena (TI) pela equipe de vigilância da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) com relatos de invasão, presença de grupos armados, ameaças e até ataques a tiros contra indígenas.

Os documentos, produzidos no ano passado e este ano, foram entregues ao Ministério Público Federal de Tabatinga, à Força de Segurança Nacional, sediada na região, e à própria Funai, de acordo com o relato dos indígenas. Além de vistorias feitas entre agosto e setembro de 2021, os indígenas relatam que, na sexta peregrinação pelo território, que tem cerca de 8 milhões de hectares, puderam constatar o aumento das invasões de criminosos e embarcações de grande e médio porte que estavam retirando "milhares de tracajás e tartarugas" e "toneladas de carne de Pirarucu" que eram vendidos no centro de Atalaia do Norte. Armados e com os rostos encobertos, os pescadores ilegais conseguiam entrar e sair da TI passando pela base na Funai.

Bruno colaborava com os indígenas, ministrando cursos sobre manuseio de mapas e operação de drones para que eles pudessem fiscalizar Javari, já que o desmonte da Funai, que fez uma série de exonerações e cortou gastos, a impossibilitava de exercer as funções. O servidor, que já tinha coordenado as atividades do órgão federal na área, que é a segunda maior reserva indígena do país e abriga a maior concentração de povos isolados do mundo. Após ser afastado da coordenação de povos isolados e de contato recente da Funai, o indigenista pediu licença da fundação "por motivos pessoais". Ele divergia da gestão da autarquia, que hoje tem à frente o delegado Marcelo Xavier, nomeado pelo presidente Jair Bolsonaro.

Sobre as revelações entregues ao MPF, a Univaja pede sigilo porque elas conteriam informações sensíveis à estratégia de proteção da área indígenas. Junto com o material, foram apresentadas imagens de embarcações abandonadas pelos criminosos em fuga. A sexta inspeção, mais detalhada, era composta por nove indígenas, que contaram ter havido confronto com bandidos quando estavam vigiando os limites do território.

"Podemos afirmar que a invasão continua intensa e, com a cheia dos rios, quando a floresta é inundada, o aumento do 'ingresso' de infratores foi constatada pela EVU (equipe de vigilância da Univaja) em campo e por nós na cidade do Atalaia do Norte", diz o relatório.

Somente no dia 15 de março de 2022, eles disseram ter se deparado com cinco embarcações pesqueiras de grande porte, com 13 metros, caixa de gelo de oito toneladas e carga total aproximada de 12 toneladas, cortando de cima para baixo o igapó, que separa a base de proteção da Funai do Lago do Jaburu. O barco, segundo o relato, estava nas proximidades da Base de Proteção da Funai na boca do Rio Ituí, ficando três delas entre a comunidade São Rafael e a base. Vale destacar que foi perto deste local que, no domingo, pouco antes do sumiço de Bruno e Phillips, que pescadores ilegais mandaram um aviso para o servidor licenciado da Funai, durante ameaça aos integrantes da Univaja, que faziam uma expedição: "quero saber se ele sabe atirar bem", teria dito Pelado, que foi detido, entre outras coisas, por esta declaração. Ameaçado de morte por sua atividade de combate a garimpeiros, pescadores e madeireiros, Bruno tinha porte de arma.

A Univaja afirma que, nos primeiros dias de trabalho, durante a inspeção, foi possível mapear "diversas estradas" para embarcações de médio porte (canoas motorizadas, sem tolda, de 9 a 12 metros e com capacidade de carga de 5 toneladas, "cortando de cima para baixo o igapó que separa a Base de Proteção da Funai do Lago do Jaburu, fora da terra indígena (faixa de aproximadamente três metros). A EVU acrescenta ainda que sua rede de informações dava conta de que ao menos seis equipes profissionais de pescadores/caçadores pescavam no interior da TI. "Algumas delas formadas por até oito integrantes armados", pontua o relatório. Eles estariam em atividade há mais de 20 dias, sem serem importunados, dentro da terra indígena, com mais de 900 quilos de sal para a conservação da carne extraída dos rios. A organização informa ainda que os nomes dos criminosos e dos receptadores, obtidos durante o trabalho de campo, estavam sendo repassados para a Polícia Federal.

Outra episódio relatado aconteceu três dias depois, em 18 de março. Durante a madrugada, outra equipe de invasores em embarcação de médio porte despista os integrantes da EVU no igapó e foge da terra indígena pelo Lago Jaburu. Os vestígios da ação foram registrados e georreferenciados, de acordo com o relatório. Também acrescenta que informações de comunidades próximas eram de que a invasão era comandada por um homem que seria morador de Atalaia e filho de um servidor aposentado da própria Funai.

Logo depois, no dia 20, centenas de tracajás, tartarugas e quilos de carne de caça estavam à venda "no mercado ilegal da cidade". Outras situações semelhantes, cujos os supostos envolvidos também têm nomes citados, são flagradas teriam ocorrido no dia 23. Em uma delas, dois indivíduos são presos com carga de carne de peixe por integrantes da Força Nacional. Com o apoio das polícias Civil e Militar, equipamentos e barcos do grupo apreendidos são deixados "na guarda do segurança da balsa da Prefeitura", mas "simplesmente somem na madrugada". Procurada, a prefeitura não retornou os pedidos de informação.

O momento mais dramático é descrito no dia 2 de abril. Os integrantes da EVU dizem que, neste dia, ao retornar para um de seus pontos de apoio no Lago do Jaburu, após vistoria nos lagos Xicute, Socó e Campina, no Rio Itaquaí, se deparam com três pescadores com camisas no rosto saindo da terra indígena. Segundo eles, com a iluminação de holofotes, os invasores atiram "sete vezes" com espingarda contra a equipe da EVU, que recuou.

A Base de Proteção da Funai foi acionada, mas não é autorizada a saída de uma equipe para apoio, de acordo com eles. Em reunião, em 4 de abril, o comandante da Operação Vale do Javari da Força Nacional de Segurança Pública explica, segundo consta no relatório, que não pode autorizar a saída de sua equipe "em virtude do baixo contingente na base naquele momento (2 policiais) e pela carência de equipamentos".

O relatório menciona o nome que agora está no centro das investigações: Pelado. É relatado que, na noite do dia 3 de março, ele, que seria morador de São Gabriel e de Benjamin Constant, estava com outros quatro ou cinco infratores pescando no interior da terra indígena, próximo à aldeia Korubo. Estariam numa canoa pequena, no Lago do Bananeira, na margem direita do Ituí, pescando peixe liso e Pirarucu. Pelado, observa a equipe da EVU, tem sido apontado "como um dos autores dos diversos atentados com arma de fogo contra a Base de Proteção da Funai entre 2018 e 2019". O relatório encaminhado pelo procurador da Univaja, Eliésio Marubo, conclui que essa informação foi repassada à Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari da Funai.

O MPF informou que tem um procedimento instaurado para investigar os relatos desde dezembro do ano passado. O órgão acrescenta que fez reuniões sobre o assunto e visitou Atalaia do Norte no mês passado. Questionada, a Funai ainda não se pronunciou sobre as denúncias da Univaja.

Neste sábado O GLOBO revelou que a Polícia Federal investiga um esquema de lavagem de dinheiro para o narcotráfico por meio da venda de peixes e animais que pode estar relacionado ao desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, procurados desde domingo no entorno da Terra Indígena do Vale do Javari, no Amazonas.

O GLOBO apurou que apreensões de peixes que seriam usados no esquema foram feitas recentemente por Pereira. As embarcações levavam toneladas de pirarucus, peixe mais valioso no mercado local e exportado para vários países, e de tracajás, espécie de tartaruga considerada uma especiaria e oferecida em restaurante sofisticados dentro e fora do país.

A ação de Pereira contrariou o interesse do narcotraficante Rubens Villar Coelho, conhecido como "Colômbia", que tem dupla nacionalidade brasileira e peruana. Ele usa a venda dos animais para lavar o dinheiro da droga produzida no Peru e na Colômbia, que fazem fronteira com a região do Vale do Javari, vendida a facções criminosas no Brasil. Há suspeita de que ele teria ordenado a Amarildo da Costa de Oliveira, o Pelado, a colocar a “cabeça de Bruno a leilão”.

Entre os brasileiros que trabalham para Colômbia como “linhas de frente” do crime organizado no Vale do Javari,

O GLOBO apurou os nomes de Caboclo, Jâneo, e “Churrasco”, que é tio de Pelado. Jâneo e “Churrasco” foram os primeiros a prestarem depoimento à Polícia Civil um dia após o desaparecimento de Bruno e Dom. Eles são considerados suspeitos de terem participado do ataque à dupla, mas foram liberados após depoimento.

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