Cerca de 33,1 milhões de brasileiros passam fome atualmente. Em pouco mais de um ano, houve um incremento de 14 milhões de pessoas na condição de não ter o que comer todos os dias.
É o que aponta o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, lançado nesta quarta-feira. A pesquisa também revela que mais da metade (58,7%) dos brasileiros convive hoje com algum grau de insegurança alimentar. A situação leva o país para o mesmo patamar da década de 1990, um retrocesso de 30 anos.
O estudo sobre insegurança alimentar foi realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), com execução em campo do Instituto Vox Populi. O projeto conta com o apoio das organizações não-governamentais Ação da Cidadania, ActionAid Brasil, Fundação Friedrich Ebert Brasil, Ibirapitanga, Oxfam Brasil e Sesc.
As estatísticas datam de novembro de 2021 a abril de 2022, período em que o Auxílio Brasil, benefício que substituiu o Bolsa Família, começou a ser pago. Foram feitas entrevistas em 12.745 lares brasileiros, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios, distribuídos nos 26 estados e no Distrito Federal. O nível de insegurança alimentar foi medido pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), metodologia também utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Vergonha de sentir fome
A pesquisa da Rede Penssan revela ainda uma dura realidade por quem convive com a fome no país: 15,9 milhões de pessoas, ou 8,2% das famílias entrevistadas, relataram sensação de vergonha, tristeza ou constrangimento pelo uso de meios que ferem a dignidade para conseguir colocar comida na mesa.
A fome é maior onde o chefe de família está desempregado (36,1%), tem emprego informal (21,1%) ou trabalha na agricultura familiar (22,4%). Nos lares onde o chefe da família trabalha com carteira assinada, a segurança alimentar chega a mais da metade (53,8%) dos domicílios.
Entre os entrevistados que relataram endividamento, quase metade (49,1%) convive com algum grau de restrição de alimentos ou fome. Quando considerados aqueles que precisam vender bens ou equipamentos de trabalho para comer, 48,7% passavam pela insegurança alimentar moderada ou grave.
'Patamar assombroso'
Para Renato Maluf, coordenador da Rede Penssan, o país atingiu um "patamar assombroso" quando se trata de fome. Ele lembra que são 14 milhões de novos famintos em pouco mais de um ano, o equivalente à cidade de São Paulo, que hoje conta com cerca de 13 milhões de habitantes.
Maluf, que também é professor do Departamento de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (DDAS) da UFFRJ, considera que a pandemia e a alta nos preços dos alimentos agravaram a situação de insegurança alimentar e fome no país, mas observa que esse cenário é o desdobramento de uma deterioração mais longa.
"Temos uma crise econômica e política que começou entre 2015 e 2016, além do desemprego crescente, precarização do trabalho, queda do salário mínimo e desmonte de programas. Houve ainda uma radicalização no governo atual com relação ao desmonte, que incluiu o fechamento do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, instituído em 1993) no primeiro dia do governo Bolsonaro."
Seis em cada dez famílias em insegurança alimentar
Além do patamar recorde de brasileiros em situação de fome, a pesquisa revela uma piora no nível de insegurança alimentar. Seis em cada dez domicílios no país não conseguem manter acesso pleno à alimentação. Há 125,2 milhões de brasileiros sob algum grau de insegurança alimentar. O número representa um aumento de 7,2% desde a edição de 2020, e de 60% em comparação com 2018.
De acordo com o IBGE, o conceito de insegurança alimentar abarca uma escala que vai desde aqueles indivíduos que têm risco de passar fome em um futuro próximo, passando pelos que restringem a quantidade de comida para a família até os que não têm alimento na mesa.
É uma situação como a de Sara da Silva Pestana, de 35 anos. Morando com os quatro filhos em uma casa de ocupação no Rio Comprido, zona norte do Rio, ela tem dificuldades para manter a despensa cheia.
Trabalhando há quatro anos como autônoma, fazendo alongamento de unha de 'acrigel' e cílios postiços, Sara sentiu o impacto na renda com a perda da clientela na pandemia e o encarecimento dos produtos. Depender de doações de cestas básicas e do auxílio do governo tem sido frequente para colocar comida no prato, e mesmo assim, não é garantia de uma alimentação farta, ela conta:
"Tem dia que falta comida, sim. A gente não passa fome, mas tem dificuldade de alimentação. Hoje, por exemplo, não tinha pão para comer, tive que fazer bolinho de farinha de trigo e dar para as crianças no café da manhã. Faltam açúcar, leite, biscoito… Na semana passada eu tive que deixar de comer para dar alimentos para as crianças. Ser mãe é isso. Muitas vezes eu deixo de comer para dar para eles. Vamos um vivendo um dia de cada vez. Pedindo para Deus prover."
Negros, menos escolarizados e mulheres são mais vulneráveis
Casos como o de Sara - que se declara parda, é mãe solo e estudou até o 1º ano do ensino médio - não são isolados. Segundo a pesquisa, a fome é historicamente maior nos lares chefiados por mulheres e com crianças menores de 10 anos, além de penalizar mais pretos e pardos e menos escolarizados.
Nas casas em que a mulher é a pessoa de referência, a fome já fazia parte de 11,2% desses domicílios em 2020. Em 2022, passou para 19,3%, quase o dobro. Nos lares que têm homens como responsáveis, a fome passou de 7,0% para 11,9% no mesmo período.
Em pouco mais de um ano, a fome dobrou nas famílias com crianças menores de 10 anos: de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022. Na presença de três ou mais pessoas com até 18 anos no grupo familiar, a fome atingiu 25,7% dos domicílios. Nos lares com apenas moradores adultos, por outro lado, a segurança alimentar chegou a 47,4%, número maior do que a média nacional.
"Crianças se encontram sob risco grande quando vivem essa situação de fome pelo comprometimento que isso gera no seu crescimento e nas suas capacidades física e cognitiva. É preciso prestar atenção se o atraso ou falta de medidas para enfrentar o problema já não está trazendo algum comprometimento de uma geração para o futuro, que já lidou com maiores fragilidades na pandemia, e agora vive essa tragédia", diz Francisco Menezes, analista de políticas da ActionAid e ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar.
Também sofrem mais com a fome os lares em que os responsáveis possuem baixa escolaridade, com quatro anos ou menos de estudo. Em 2022, 22,3% dos domicílios com essa característica enfrentam a fome. Em 2020, esse percentual era de 14,9%. Na outra ponta, os chefes de família que tem escolaridade mais alta lidam menos com esse problema. O maior percentual de segurança alimentar é em domicílios cujos responsáveis têm mais de oito anos de estudo: 50,6%.
A fome também tem cor e se tornou ainda mais grave pelo recorte de raça nos últimos anos, segundo a pesquisa. Enquanto a segurança alimentar está presente em 53,2% dos lares onde a pessoa de referência se autodeclara branca, esse indicador cai para 35% quando os responsáveis são pretos ou pardos. Isso significa que 65% dos domicílios chefiados por negros passam por alguma dificuldade de pleno acesso aos alimentos.
Na comparação com a edição de 2020 da pesquisa, a fome saltou de 10,4% para 18,1% em 2022 entre os lares comandados por pretos e pardos.
Quando consideradas as grandes regiões do Brasil, os números mostram que a fome é maior no Norte e Nordeste. Respectivamente, 71,6% e 68% dos lares nestas regiões lidam com algum grau de insegurança alimentar – índices maiores do que a média nacional, de 58,7%.
No Norte, a fome fez parte da rotina de um quarto das famílias (25,7%). No Nordeste, esse percentual foi de 21%, enquanto a média nacional é de 15% e, no Sul, 10%.
O campo também sofre mais para colocar comida no prato. A insegurança alimentar fez parte de seis em cada dez lares nas áreas rurais. Destes, 18,6% das famílias convivem com a fome. Nem mesmo os lares de agricultores familiares e pequenos produtores de alimentos escapam dessa realidade: a fome atingiu 21,8% desses domicílios.
Salário mínimo é insuficiente para garantir segurança alimentar
O estudo mostra ainda que a obtenção de um salário mínimo por pessoa não é mais sinônimo de acesso à alimentação de forma adequada. Em 2020, brasileiros que moravam em lares com renda maior que um salário mínimo por pessoa não conviviam com a fome.
Agora, 3% dos lares nesta condição tem seus moradores em situação de fome, 6% convivem com algum grau de restrição de alimentos (insegurança alimentar moderada) e 24% não conseguem manter a qualidade adequada de sua alimentação (insegurança alimentar leve).
"O salário está perdendo a corrida da inflação. Nos lares com renda per capita abaixo de meio salário mínimo, ou então um quarto de salário mínimo, as carências são ainda maiores. A precariedade já é grande e a capacidade aquisitiva fica muito baixa, inclusive considerando que as pessoas são obrigadas a garantir moradia e outras despesas básicas", destaca Francisco Menezes, analista de políticas da ActionAid.
De acordo com a pesquisa da Rede Penssan, cerca de metade das famílias que relataram ter deixado de comprar arroz, feijão, frutas e vegetais nos últimos 3 meses anteriores à pesquisa estão em situação de insegurança alimentar moderada ou passam fome. Entre as famílias que deixaram de comprar carnes nesse mesmo período, 70,4% estão famintas.
Entre os que precisaram parar de estudar para contribuir com a renda familiar, são 55,2% nesses recortes mais graves de insegurança alimentar.
Conjunto de ações
Especialistas lembram que o Bolsa Família já lidava com a falta de correção em termos nominais, e agora o novo programa Auxílio Brasil permanece com valor insuficiente para apoiar as famílias vulneráveis quando se observam os preços.
Menezes chama atenção ainda para a fila de espera do programa, e considera equivocada a aposta do governo de incluir beneficiários por meio de aplicativo.
"Essa medida não resolve quando você têm situações de extrema pobreza que estão nos rincões mais afastados, em que se quer a população tem acesso à internet. Isso não pode se chamar de modernização do sistema."
Maluf pondera que é preciso um conjunto de ações integradas, já que não há um único instrumento capaz de equacionar a fome e a insegurança alimentar:
"O Brasil hoje carece de estoques de alimentos para regular preços e abandonou a política de agricultura familiar. Se quisermos enfrentar a promoção da segurança alimentar nas suas várias dimensões, precisaremos atuar no acesso aos alimentos e no enfrentamento à crise econômica, com ampliação do emprego e valorização dos salários. Também é preciso atuar sobre as desigualdades de gênero e raça, já que a sociedade brasileira é uma das mais desiguais no mundo."