'Todas as casas tem móveis estragados na frente', diz França
Reprodução/Arquivo pessoal
'Todas as casas tem móveis estragados na frente', diz França

Pernambuco foi castigado pelas chuvas na última semana. O treinador comportamental Luís Henrique Rodrigues França deu sorte - apesar de morar em Recife, ele não teve a casa atingida pela água. Tampouco precisou ser resgatado diante de deslizamentos e enxurradas.

A situação dos conterrâneos, no entanto, incomodou, e ele saiu de casa no fim de semana empenhado em arrecadar doações. Depois de levantar uma quantia em dinheiro com amigos e alunos, ele se dirigiu a Camaragibe, no bairro Japão, e descreve o que viu como um "tsunami". "Pessoas que já eram extremamente pobres perderam tudo", relembra.

'Vi gente que perdeu tudo duas vezes'

Logo no primeiro dia da distribuição de colchões e mantimentos, França se deparou com uma das histórias mais chocantes da jornada como voluntário. Uma mulher, que na quinta-feira (26) havia recebido doações de móveis, perdeu tudo novamente no sábado (28), quando a chuva voltou.

"A água chegou a cobrir a telha da casa dela. Foi assustador", relembra. No dia, ele reuniu meia tonelada de doações. "Não deu para nada. É um cenário que dá medo. As pessoas avançam. Estão com fome. A gente tenta distribuir, mas não tem como ter controle, não tem como organizar direito."

Com o passar dos dias, revezando entre Camaragibe, Recife e Jaboatão dos Guararapes, ele diz ter aprendido com o processo e conhecido as lideranças dos bairros, o que facilitou o trabalho.

Para França, a falta de apoio do poder público na região é o que mais revolta as equipes voluntárias.

"Tem muita gente ajudando, e mesmo assim não é suficiente. Eu estou fora de discutir sobre política, mas o poder público não chega onde a gente chega. Em nenhum bairro que a gente foi, vimos equipes da prefeitura. E fomos em três cidades, o poder público não está auxiliando com comida, cobertor. Em Jaboatão, vi uma equipe limpando a rua com uma retroescavadeira, pegando entulhos de sofá, móveis, equipamentos eletrônicos. Mas a própria população reclama que falta apoio", conta.

Segundo ele, falta comida, fralda, remédios, leite, colchões e cobertores nos abrigos disponibilizados pelas prefeituras, por isso, grande parte das famílias preferem ficar nas áreas de risco do que partir para escolas e creches.

O medo de ter a casa saqueada por quem passa pelo bairro alagado também é uma realidade dos moradores dessas comunidades.

"Muitos deles já não têm muita coisa. Sai dali com medo da barreira desabar, e quem fica no bairro invade a casa e saqueiam tudo. Foi o que aconteceu em Muribeca, um bairro de Jaboatão.

"As casas estão sendo saqueadas. As pessoas estão com medo. É uma situação muito delicada, complicada. Tem muita gente precisando, e quem não precisa está tentando ganhar alguma coisa em cima disso."

No bairro do Cavalero, em Recife, a água chegou aos 2,5 metros de altura. Ao passar pelo local, França diz que todos os moradores perderam seus móveis. "Passou o andar térreo de muita casa. Foi muito rápido. Todas as casas têm móveis estragados na frente".

"Uma coisa me chamou muita atenção. Uma criança estava chorando, ela ia dormir no colchão molhado e a irmã em um papelão. É muito triste. Chega uma hora que o recurso acaba, o alimento acaba, colchão acaba, a gente quer ajudar e não consegue. Terça-feira saí com a missão de conseguir oito colchões, e conseguimos quase 500 kg de comida e 22 colchões. À noite, voltei no bairro de Cavaleiro para entregar o colchão na casa dessa senhora onde as crianças estavam dormindo no colchão molhado e no papelão."

'Tsunami' em Muribeca

Bairro carente de Jaboatão dos Guararapes, Muribeca sofreu com a abertura das comportas de uma represa para escoamento da água. França repassa o relato feito por uma moradora sobre a velocidade em que a água subiu dentro das casas.

"O rio encheu em uma velocidade tão grande, que uma dona de casa me contou que quando a água bateu no pé, ela foi chamar a filha. Quando ela voltou, a água estava no joelho. Pegou a televisão e subiu para o primeiro andar, na casa da outra filha. Nesse meio tempo a água subiu até a cintura. Em menos de cinco minutos, o andar térreo da casa estava completamente cheio de água", afirma.

"Conseguiram salvar algo nas casas com mais de um andar, mas pouquíssimas coisas. Perderam documentos, fotos, eletrodomésticos, geladeira, cama. Quem não tinha primeiro andar, perdeu tudo. Nas fotos que tirei lá, o pessoal jogando notebook fora. E é uma consequência da chuva, mas que houve uma ação humana. Duas crianças foram encontradas no Rio boiando e ninguém sabe de onde elas são. Não se sabe nem se os pais estão vivos."

Reflexos psicológicos

A rotina de trabalho intenso na arrecadação de alimentos e colchões para os desabrigados tem refletido na saúde psicológica de França. Ao falar com a reportagem, ele fica sem palavras.

"É um cenário que... Quando chego em casa a noite... O bairro que moro não foi afetado, mas quando eu chego, não consigo dormir. Eu choro muito. Nunca fiz isso, nunca trabalhei como voluntário, comecei na intenção de ajudar. A partir daí, muita gente começou a centralizar em mim ou pedir socorro. Eu fui para onde me chamavam", conta.

"Era um movimento solo, mas agora conto com muitos amigos que se colocam à disposição. Chega no final do dia e a sensação é de que o dever está cumprido. Mas ontem a noite pedi a Deus que ele colocasse outra pessoa na frente desse movimento. Estou emocionalmente cansado, fisicamente cansado. E aí eu recebi mais doações de colchões de São Paulo. Eles disseram 'não desiste'. E eu não posso desistir. Tenho que continuar".

** Filha da periferia que nasceu para contar histórias. Denise Bonfim é jornalista e apaixonada por futebol. No iG, escreve sobre saúde, política e cotidiano.

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