Áudios que provam tortura na ditadura são 'dolorosos', diz ministra

Maria Elizabeth Rocha, do STM, diz que gravações servem de alerta para que práticas não se repitam

Áudios que provam tortura na ditadura são 'dolorosos', diz ministra
Foto: Reprodução
Áudios que provam tortura na ditadura são 'dolorosos', diz ministra

Os áudios de sessões do Superior Tribunal Militar (STM) em que os então  ministros da Corte reconhecem que presos políticos foram torturados no país durante a Ditadura Militar, divulgados no último domingo por Míriam Leitão em sua coluna no GLOBO, são "dolorosos", segundo a ministra do Superior Tribunal Militar (STM) Maria Elizabeth Rocha — primeira e única mulher a ser nomeada para o tribunal.

Segundo a ministra, em entrevista ao GLOBO, a divulgação dos áudios de sessões do STM entre 1975 e 1985, um material que vem sendo compilado pelo historiador e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Fico, serve "de alerta para que tais práticas não se repitam". Nas sessões, abertas e secretas, os ministros militares e civis tecem comentários sobre casos de tortura que ocorreram durante a ditadura.

Para Elizabeth Rocha, que é uma das cinco civis entre os 15 ministros que integram o STM, embora a Justiça Militar tivesse conhecimento dos atos de tortura denunciados por presos políticos nos processos, "não significa que o STM fosse favorável ou conivente diante de tais abusos". Embora pontue que "todas as instituições cometem erros", a ministra cita como exemplo decisão de 1977, quando todos os integrantes da Corte se declararam "visceralmente contrários às torturas e sevícias aplicadas aos detidos, como um atentado à própria dignidade humana".

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Como a senhora avalia os áudios divulgados pela jornalista Míriam Leitão em sua coluna no jornal "O Globo", que mostram sessões do Superior Tribunal Militar (STM) na época do governo ditatorial?

Como ser humano e cidadã os áudios são dolorosos! O que posso dizer, tendo ouvido alguns, não todos, é que eles servem de alerta para que tais práticas não se repitam.

Ministra, na sua avaliação, a publicidade dessas informações contribui para a construção e preservação da nossa democracia?

Sou uma professora e pesquisadora, antes de ser magistrada. Por essa razão, penso que a história deve ser preservada e traz ensinamentos importantes sobre o nosso passado e o futuro que buscamos. A democracia é um processo em permanente construção, neste sentido todo o resgate histórico aperfeiçoa o Estado Democrático de Direito.

A revelação dos áudios é a confirmação de que a Justiça Militar sabia da existência de atos de tortura praticados por agentes do Regime Militar?

Por certo a Justiça Militar da União tinha conhecimento, até porque os próprios advogados de defesa a denunciavam nos processos. Mas isso não significa que o STM fosse favorável ou conivente diante de tais abusos. E cito como exemplo maior a decisão de outubro de 1977, subscrita à unanimidade pelos generais, almirantes, brigadeiros e civis que compunham a Corte, contra as torturas e sevícias, devidamente comprovadas nos autos.

E o que diz esta decisão?

Numa parte do voto se lê:

“Nós juízes desta Casa, deste templo de Justiça, todos nós, indistintamente, somos visceralmente contrários às torturas e sevícias aplicadas aos detidos, como um atentado à própria dignidade humana. [...] .Pouco importam os antecedentes e as suspeitas que possam recair sobre os acusados da prática de crimes, recolhidos à prisão. Na obtenção de suas confissões, não é lícito a nenhuma autoridade policial, sendo-lhe mesmo defeso, empregar métodos medievais e cruéis, sejam ou não procedentes as acusações que lhe são imputadas. Ficou comprovado no processo, sem ressaibo de dúvida, pela simples leitura das conclusões dos laudos apresentados pelo Instituto Médico-Legal do Estado do Rio de Janeiro, referentes às lesões corporais causadas ao apelado, que o mesmo sofreu torturas e sevícias que deixaram marcas indeléveis em seu corpo, não obstante o retardamento havido na realização dos exames periciais. Contra tais métodos, contra tais práticas, este Tribunal, pela unanimidade de seus Juízes, ao tomar esta decisão, quis externar o seu repúdio, a sua revolta e a sua condenação. É inadmissível a repetição de fatos como os lamentavelmente retratados nos autos, que constituem um eloquente atestado de afronta e desrespeito à dignidade da criatura humana.”

Ressalvo que [o STM] foi o único tribunal brasileiro que exarou uma decisão desta magnitude e pontuo que o Poder Judiciário só se manifesta sob provocação. Então tais denúncias, para serem julgadas, deveriam primeiramente terem sido apuradas pela Polícia Judiciária e, após, apresentadas sob forma de denúncia pelo Ministério Público Militar à Justiça, uma vez que as ações sob nossa jurisdição são todas penais públicas incondicionadas, o que significa que somente o Ministério Público pode oferecê-las e não os ofendidos.

Qual foi o papel do STM na análise destes casos que relatavam torturas? A Corte deu decisões que condenavam essas práticas?

Com certeza, como a que eu já mencionei. E foi mais além. Apesar de a Corte Militar ter sido instituída em 1808, quando da vinda da família real ao Brasil, muitos lhe atribuem a pecha de Tribunal de exceção, criado em 1964. Nada é mais equivocado! Sua jurisprudência atesta imparcialidade e isenção em decisões memoráveis, como quando reformou sentença condenatória proferida contra [o então deputado federal] João Mangabeira pelo Tribunal de Segurança Nacional do Estado Novo, concedendo-lhe a ordem de habeas corpus, em 21 de junho de 1937.

Há outros exemplos?

Rememoro o caso da incomunicabilidade dos presos, proibidos de manter contato com seus advogados sob a égide da Lei de Segurança Nacional e que teve na histórica decisão da Representação nº 985, correta e precursora solução ao observar os princípios do direito de defesa e autorizar o contato dos réus com seus patronos.

Em outro recurso, na década de 1970, assentou a Corte Militar Federal que a mera ofensa às autoridades constituídas, embora expressa em linguagem censurável, não configurava crime contra a segurança do Estado, resguardando dessa forma, a liberdade de imprensa e de expressão.

Quando a Lei de Anistia excetuava os agentes que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, ou seja, praticamente todos os presos políticos, foi o Superior Tribunal Militar, que em interpretação hermenêutica da norma, ampliou a concessão do perdão a essas pessoas. Foi o STM, não a lei, que era extremamente restritiva.

Significa que a Justiça Militar não falhou?

Não quero com isto dizer que não existiram falhas. Por óbvio, todas as instituições cometem erros, mas a trajetória do STM é esquecida em seus acertos. E foi por esta razão e não outra que os grandes e corajosos advogados que lá atuaram em defesa dos presos políticos, como Heleno Cláudio Fragoso, Técio Lins e Silva e o inesquecível Sobral Pinto, sempre teceram considerações elogiosas à Corte Militar Federal.

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