Senadores e generais da reserva reagiram ao uso do orçamento secreto pelo Ministério da Defesa, de R$ 588 milhões. Deste total, R$ 401 milhões foram repassados pela pasta militar para contemplar aliados do governo no Senado e bancar até a construção de uma capela funerária, conforme revelou o jornal O GLOBO nesse domingo.
A reportagem mostrou que 11 senadores, sendo a maioria alinhada ao governo, foram contemplados com emendas de relator repassadas pela Defesa para realizar centenas de obras em seus redutos eleitorais. O ministério era chefiado, até poucos dias atrás, pelo general da reserva Braga Netto, que deixou a pasta e ganhou um cargo de assessor no Palácio do Planalto para viabilizar a sua candidatura a vice na chapa de Jair Bolsonaro. O orçamento secreto é um mecanismo de verba parlamentar utilizado para contemplar aliados do presidente Jair Bolsonaro em troca de apoio no Congresso.
Os recursos foram destinados ao Calha Norte, programa criado na década de 1980 diante de uma preocupação dos militares com a Amazônia. O objetivo dessa ação é investir em projetos de infraestrutura básica, aquisição de equipamentos e compra de bens para quartéis na região, principalmente em áreas distantes dos grandes centros urbanos. Segundo levantamento do GLOBO, uma parte das emendas de relator destinadas pela pasta serviu a outro propósito — praças, passarelas de concreto e até para bancar obras de edifícios que vão abrigar as câmaras de vereadores em duas cidades do interior do Amapá e uma no Amazonas, ao custo de R$ 1,5 milhão cada.
Por meio de nota, o Ministério da Defesa informou que o programa Calha Norte não leva em consideração a forma com os parlamentares indicam recursos, se as emendas que chegam são impositivas ou de relatoria, “mas, sim, se estão em conformidade com as diretrizes técnicas”. A pasta também ressaltou que o programa “abrange 619 municípios em 10 estados. Assim, qualquer parlamentar dessas localidades têm a prerrogativa de propor emendas que serão analisadas mediante critério técnico”.
Senadores questionam
O ministério, porém, não explicou por que apenas 11 senadores tiveram a prerrogativa de enviar recursos via emendas de relator. Parlamentares de estados abrangidos pelo programa Calha Norte que não foram contemplados com o orçamento secreto da Defesa criticam a "falta de critérios" da gestão do ex-ministro Braga Netto.
"A pasta está beneficiando quem goza de mais proximidade do governo. Funciona assim, o governo prestigia uns, desprestigia outros. Acaba sendo uma injustiça, pois vai pela questão da proximidade" afirma Telmário Mota, líder do PROS no Senado.
Ao contrário de Telmário, o senador Chico Rodrigues (União Brasil), que já foi líder do governo e flagrado pela Polícia Federal com dinheiro na cueca, foi contemplado com R$ 30 milhões. Os dois são do estado de Roraima.
"O Chico era líder do governo, é do DEM (atual União Brasil). Então acaba recebendo um carinho maior" acrescentou o parlamentar do PROS.
O senador Sérgio Petecão (PSD-AC) também não aparece na planilha de agraciados com recursos da Defesa para o seu estado, apesar de seu colega Márcio Bittar (União Brasil-AC), relator do Orçamento de 2021, ter sido beneficiado com R$ 204 milhões.
"O governo não passou nem um real de emendas de relator da Defesa para mim. Os parlamentares não entendem qual é o critério usado. Não sei o critério que o governo adota. E os prefeitos cobram isso da gente. Por isso, acredito que o tratamento deveria ser igualitário" lamenta Petecão.
Procurados, Chico Rodrigues e Bittar não se pronunciaram.
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Dos 11 senadores contemplados, nenhum é da oposição. Senador pelo estado do Pará, Paulo Rocha (PT) diz que o uso do orçamento secreto no Ministério da Defesa, ou em qualquer pasta, é uma afronta à Constituição.
"Isso é uma distorção total do orçamento público do país, sendo usado apenas para atender aos interesses do governo de plantão. Estão usando toda estrutura do estado brasileiro para consolidar uma força política, para favorecer suas paróquias, seus objetivos, transformando deputados e senadores em vereadores federais."
Militares criticam
Generais da reserva ouvidos pelo GLOBO avaliaram como "grave" o uso de recursos da pasta para fazer obras sem conexão com a área da Defesa.
"Em momento nenhum, da minha vida militar, vi recursos da Defesa sendo empregados de forma política, para atender interesses outros que não sejam a missão Constitucional das Forças Armadas. Eu nunca vi isso. Uma decepção" afirma o general da reserva Paulo Chagas, que já foi chefe de Gabinete do Estado-Maior do Exército e, nas eleições de 2018, chegou a declarar voto em Jair Bolsonaro.
Especialistas ouvidos pelo GLOBO também criticaram o uso da Defesa para a realização de obras por critérios políticos, em cidades escolhidas por um grupo de senadores. O historiador e membro da Academia Brasileira de Letras José Murilo de Carvalho, estudioso da ascensão militar na política brasileira, classificou como “grave” o uso do dinheiro da pasta com finalidade política.
"Trata-se de um flagrante desvio de funções do Ministério da Defesa e, como tal, coloca em posição delicada o general Braga Netto" afirmou Carvalho.
Jurista e doutor em Direito do Estado, Marçal Justen Filho afirma que os recursos destinados pela pasta militar deveriam atender às “necessidades do setor”.
"A destinação de recursos para o Ministério da Defesa visa a atender necessidades desse setor. Alocar recursos para a Defesa e transferir posteriormente essas verbas para outros fins, não relacionados com a questão da Defesa, configura uma desnaturação do modelo constitucional" pondera o jurista.
"Os recursos públicos não podem ser instrumento para qualquer agente público obter vantagens no processo eleitoral."
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