Boate Kiss após a tragédia
Reprodução: commons
Boate Kiss após a tragédia

No dia 27 de janeiro, o incêndio que ocorreu na Boate Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, completa 9 anos. A tragédia que ocasionou a morte de 242 pessoas e feriu 636, ainda deixa marcas àqueles que sobreviveram ou perderam familiares, amigos e conhecidos em 2013. 

O acidente foi considerado a segunda maior tragédia no Brasil em número de vítimas em um incêndio. Gabriel Rovadoschi Barros, 27, psicólogo, sobreviveu a tragédia. Na época, ele tinha 18 anos e aquele final de semana foi a primeira ida dele a uma boate. No final da noite, ele descobriu ter perdido dois amigos, Alexandre Prado, 18 e Bernardo Robe, 20.

Segundo o sobrevivente, tudo começou de repente, quando a música parou. 

"Paramos em um canto, no que chamam hoje de Pub. De repente a música parou e as pessoas começaram olhar em direção ao palco e a primeira coisa que eu me falaram foi que estava acontecendo uma briga".

Com um tumulto no local, Gabriel já não via seus amigos e optou por seguir a multidão e tentar sair do local.

"Eu vi um tumulto das pessoas indo em direção a entrada e eu fui também. Na minha cabeça eles (amigos) tinham me seguido e era uma briga, era essa a informação que eu tinha. Dei uns cinco passos em direção a entrada e vi que as portas estavam fechadas. Aí começou os gritos e comecei a ser esmagado por todo mundo lá", conta Gabriel.

No mesmo instante a fumaça chegou onde Gabriel estava. Ele relata que no primeiro momento era uma fumaça branca, mas logo a fumaça escureceu e começou a arder os olhos e o nariz. Para se proteger, ele ergueu a gola da camiseta sob o rosto e caminhou rumo à saída.

"Pensei bom, isso aqui é um incêndio. Eu não gritei porque eu pensei que eu ia precisar desse ar e já tinha gente gritando por mim então ninguém ia me ouvir, e pensei também em prender a respiração, porque doía para respirar."

O estudante então começou a andar em linha reta e tentou se equilibrar em outras pessoas. Depois de uma multidão empurrar as portas da boate, elas se abriram e foi quando Gabriel conseguiu sair. 

"Eu levantei minha cabeça e vi luzes do poste, foi onde eu me atirei. Quando cheguei na rua, o tempo parou, porque não tinha onde eu fosse pisar que eu não pisaria em alguém, então eu precisei escolher quem eu machucaria menos pisando. Eu fiz essa escolha, pisei em alguém e saí da boate".

Boate Kiss no momento do incêndio
FOTO: AGÊNCIA BRASIL
Boate Kiss no momento do incêndio

Rovadoschi conta ainda que a primeira coisa que fez foi ligar para a mãe ir buscá-lo. Logo depois ele sentou-se no meio fio da rua e se recompôs para procurar seus amigos. 

Ao ser questionado sobre a proporção do incêndio, Gabriel diz que só foi ter noção do que estava acontecendo dias depois.

"Tudo isso durou pouco tempo. Quando a fumaça chegou em mim eu achei que ia morrer já. E quando eu não vi a saída também me passou isso pela cabeça. Mesmo sem ter a noção do que tava acontecendo. Só fui ter noção dias depois".

Com apenas 18 anos quando tudo aconteceu, Gabriel não se permitiu falar do assunto durante anos e chegou a pensar que sua dor não era legítima, já que não se lesionou fisicamente.

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"Enquanto esperava minha mãe, ouvi um cara do Samu dizendo: “Se vocês estão respirando e estão andando vocês estão bem” e pra mim essa frase teve o efeito de me acompanhar durante anos. Eu não me senti digno de sofrer pelo que eu passei, porque eu não tive queimadura, eu não me lesionei fisicamente. Levei muito tempo pra trabalhar isso em mim. Essa dor deve ser respeitada especialmente aqui na cidade (Santa Maria) e deixar de ser tabu falar sobre isso", conta Rovadoschi.

Em 10 de dezembro de 2021, os quatro réus acusados do incêndio da boate Kiss foram condenados : Elissandro Callegaro Spohr, Mauro Londero Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão foram condenados com penas de 18 a 22 anos de prisão. Apesar da liminar que os mantém em liberdade, Gabriel diz que a justiça deu início com a condenação, mas que deve ser prezado que algo assim nunca mais aconteça.

“Existe ainda um longo processo de luta que está por vir. Eu acompanhei o julgamento lá em Porto Alegre e foi um período muito intenso que ainda estou absorvendo os efeitos disso”, diz o psicólogo.

Na época, Gabriel cursava Jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria, mas após a tragédia ele decidiu seguir o caminho da psicologia e se formou na profissão. Hoje ele vive em Santa Maria como mestre, futuro doutor e assume que a vida não se resume a ser um sobrevivente do incêndio, mas que vai continuar lutando e representando a dor coletiva do episódio, como já faz a algum tempo com o perfil “Kiss: que não se repita” , disponível nas redes sociais.

Ligiane Righi da Silva, mãe de Andrielle Righi da Silva , que tinha 22 anos quando faleceu no incêndio, conta que ainda sofre com a perda de sua filha. 

Ela relembra, que no dia 26,  Andrielle se arrumava com sua irmã para a festa. “A folia da Andri escolhendo seu vestido e desfilando, sua alegria era contagiante, estava muito feliz.” 

“A partida da nossa filha está nos afetando até hoje, não somos mais os mesmos. A casa está com um silêncio que dói.” 

A mãe explica que no dia, sua filha Andri (apelido carinhoso que Ligiane deu a filha) “foi comemorar seus 22 anos, e celebrar a vida com as amigas, mas voltaram todas mortas, pela ganância, omissão e falta de prevenção”.

A tragédia fez com que Ligiane exigisse justiça pela morte da filha.

“Minha vida mudou completamente, tive que defender o óbvio e lutar por Justiça e dar voz à minha filha”, explica. 

Andrielle Righi abraçando sua mãe, Ligiane Righi
Arquivo pessoal
Andrielle Righi abraçando sua mãe, Ligiane Righi

Ligiane Righi e Flávio Silva, pais de Andrielle Righi estiveram à frente de passeatas, protestos e vigílias aos longos desses 9 anos. Flávio foi líder do movimento Do Luto à Luta, e atualmente é presidente da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes (AVTSM). 

A mãe, ainda falou sobre o processo que durou 8 anos e 10 meses para ter algum resultado, para ela: “Com o julgamento ano passado foi feita parte da justiça mesmo que tardia. Eles foram julgados e responsabilizados pelos seus atos, cada um de acordo com a sua responsabilidade, mas a luta continua, tem muitas mortes para poucos responsabilizados.” 

Para ela, ainda é “uma realidade cruel todos os dias acordar e observar a cama da minha filha vazia, o lugar dela na mesa com a cadeira vazia, o silêncio que ficou, isso está nos matando a cada dia.” 

"Nos preparamos para perder tudo nesta vida, bens materiais, amizades, conquistas. Nos adaptamos tão bem a novas condições impostas pela vida, mas nunca estaremos preparados para perder alguém que está ao nosso lado, não há como se adaptar ao vazio deixado por quem foi e continua sendo tão amado”, disse Righi sobre a dor da perda de sua filha.

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