Mural pintado no Jacarezinho após mortes em operação policial
Fotto:Lenon Felício / LabJaca
Mural pintado no Jacarezinho após mortes em operação policial

Às 6h04 da manhã do dia 6 de maio, enquanto trabalhava na rua, Raphael Castro ouviu os primeiros disparos da operação policial que se tornaria, em poucas horas, a mais letal da história do Rio de Janeiro . Nascido e crescido na comunidade do Jacarezinho , na Zona Norte, o artista de 22 anos poderia ter sido um dos 28 mortos naquele longo dia de terror caso não tivesse encontrado um pequeno recuo coberto. Ali se apertou com outras oito pessoas, entre elas seu pai, o também artista Roberto Castro, de 49 anos. Juntos, Roberto e Raphael, que têm um negócio de artes gráficas e marcenaria, faziam um serviço para uma empresa de mototáxi quando a Polícia Civil adentrou a favela. A dez metros de distância do tiroteio, os dois foram feridos com estilhaços da mesma bala que atingiu a perna de um outro homem, que também tentava se proteger. A cena, que durou cerca de 40 minutos, reverbera frequentemente na memória de Raphael, como uma das muitas representações do l uto coletivo pelo qual sua comunidade teve de passar.

Com a intenção de aliviar os efeitos desse trauma, a LabJaca , organização criada por jovens negros do Jacarezinho para produzir dados sobre a pandemia na comunidade, e a Voltando à Escola , movimento do artista plástico paulista Célio Santana que visa a trazer a arte de rua para dentro das escolas públicas do país, juntaram-se para cobrir com painéis de grafites os buracos de bala deixadas nos muros do Jacarezinho pela incursão policial. O mutirão artístico começou no último sábado, por volta das 8h, e só terminou às 20h da noite do dia seguinte. Segundo o LabJaca, as intervenções artísticas, que deram novos ares a uma região combalida pela violência, aconteceram em pelo menos 15 áreas diferentes do Jacarezinho. Participaram da iniciativa 30 grafiteiros de diversos estados, como São Paulo, Minas Gerais e Piauí . E também artistas do próprio Jacarezinho, como Raphael e seu pai.

Com a latinha de spray na mão, Roberto Castro tornou-se Times, identidade artística que assumiu 25 anos atrás, quando começou a grafitar e transformou a arte de rua em sua principal fonte de renda. Nos pontos onde o poder da arma de fogo ficara gravado, a tinta de Times valeu como um bálsamo para as cicatrizes palpáveis e impalpáveis de uma guerra que se estende há décadas. Não levou muito tempo para o mutirão atrair olhares e envolver a comunidade inteira. Até as crianças se aproximaram aos poucos e acabaram ajudando os artistas a pintar, conta Thiago Nascimento , cofundador do LabJaca.

— A recepção foi incrível. As pessoas paravam para tirar foto quando os painéis ainda estavam pela metade. A gente deu câmeras nas mãos das crianças, que nunca tinham tirado foto, para entrevistar e registrar os grafiteiros. O que mais impressionou foram os senhores e senhoras de idade nos ajudando com água, participando do processo, oferecendo almoço aos artistas, enfim, se colocando à disposição. Precisávamos levantar a autoestima dos moradores do Jacarezinho, que estavam muito abatidos depois do que aconteceu — afirma o estudante de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) .

Mas a missão deu trabalho. A LabJaca teve cerca de uma semana para providenciar o dinheiro do projeto, que foi todo financiado por apoiadores. As doações somaram mais de R$ 8 mil, de acordo com Thiago Nascimento. Um valor suficiente para comprar mais de 150 latinhas de tinta spray, além da argamassa necessária para emendar os furos de bala de fuzil. Além disso, a maioria dos artistas trazidos de outros estados por Célio Santana preferiu dispensar a ajuda de custo oferecida pelo LabJaca. Com as doações , a oficina gerida por Times e Raphael conseguiu encomendar material para todos os grafiteiros que participaram do mutirão.

— Chegou a sobrar tinta. Agora, a gente quer ampliar o projeto. Onde antes a criança via tudo furado de bala, a criança passa a ver um desenho, uma arte. Aqui não tem investimento em cultura, e a cultura salva. Quando o Estado não traz cultura para cá, nós trazemos. E por isso precisamos cada vez mais de iniciativas como essa — diz o grafiteiro.

Idealizador do Voltando à Escola, Célio Santana assina um dos maiores painéis criados no grafitaço: uma pintura abstrata de 15 metros de largura por 7 de altura. Sua arte, segundo ele, repaginou um muro que estava especialmente esburacado por sucessivos tiroteios.

Você viu?

— Desenvolvo o projeto Voltando à Escola há três anos e já percorri várias comunidades do país. Posso dizer que a recepção no Jacarezinho foi diferente. Parece que as pessoas viraram crianças. Fui muito bem recebido por todo mundo. Foi muito legal — afirma.

Célio trouxe dez artistas de locais variados para participar do mutirão. Um deles era a piauiense Luna Bastos , de 25 anos:

— No mural que fiz, busquei representar a importância do afeto como meio de cura, diante de toda a dor que essa população vivenciou e ainda vivencia pela ausência do Estado. Foi uma experiência muito intensa e positiva, pois pude ver o potencial transformador da arte. Ver a alegria dos moradores foi muito revigorante.

Para outro artista que contribuiu no evento, o grafiteiro Guilherme Kid , o mutirão teve também a função de mostrar que a realidade da favela não se resume em tiroteios e criminalidade.

— Sou de Realengo. Nos meus murais e telas tento expressar a identidade da periferia do Rio, que não é a da criminalidade. No Jacarezinho o Estado chegou com bala e nós chegamos com arte. Foi emocionante ver os moradores fotografando nosso trabalho e as crianças se identificando com o meu mural — diz.

Agora, o LabJaca pretende estender a iniciativa para outros pontos da comunidade, com o propósito de transformar o Jacarezinho “na maior galeria de arte a céu aberto da América Latina ”.

— Essa foi a primeira de muitas ações. Temos um plano que envolve também o acampanhamento psicológico dos moradores do Jacarezinho. Esbarramos sempre na questão da instabilidade econômica, porque somos todos jovens negros. Mas a contribuição dos nossos apoiadores nos permitiu superar essas dificuldades até agora. Nossa ideia é sempre imaginar mais planos — diz Thiago Nascimento.

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