"É um cenário de cidade fantasma, né?", disse à reportagem um pedestre na Avenida Mem de Sá, na Lapa, no Rio de Janeiro , ainda por volta das 19h desta sexta-feira (05), quando todos os tradicionais botequins e restaurantes daquela área já estavam de portas arriadas. A situação se repetiria por quase toda a cidade.
Do início do decreto da prefeitura — uma espécie de toque de recolher, que limitou o horário de funcionamento dos estabelecimentos durante a noite, assim como a permanência nas ruas —, até a madrugada, os principais e mais problemáticos destinos da boemia carioca durante a pandemia nas zonas Sul, Oeste e Norte, como a Rua Dias Ferreira, no Leblon, a sempre pulsante Olegário Maciel, na Barra da Tijuca, e a Praça Vanhargem, na Tijuca.
Na sexta (05), muito diferente de todas as últimas, a desordem, a indiferença quanto à Covid-19 e o descumprimento às recomendações sanitárias mais básicas, pelo menos por uma noite, perderam o protagonismo: o falatório e as músicas altas deram lugar ao silêncio, rompido de vez em quando por um ou outro motoboy, ciclista ou até corredor com a sua mochila de delivery. A iluminação dos bares foi substituída por um escuro quase que irreconhecível.
O cenário, que em muito remete ao primeiro momento de isolamento da pandemia, nos meses de abril e maio do ano passado, também foi observado por Glória, Catete, Flamengo, Ipanema, Maracanã, Praça da Bandeira, Rio Comprido, Méier e Vila Isabel. Na Praça Cazuza, no Leblon, o único elemento reconhecível às 23h30 era a estátua do cantor, ao breu. Na Olegário Maciel, por volta de meia-noite, nem uma alma viva.
No máximo uma garça solitária, que procurava o que comer entre as pequenas poças da garoa paulistana que caiu durante toda a noite — mais um fator importante que contribuiu para os planos da prefeitura. Na Praça Vanhargem, na Tijuca, nem uma meia-porta à 1h da manhã. Nos banquinhos da praça, um rapaz com sua mochila de entregas aguardava a próxima viagem, enquanto três adolescentes mais saidinhos trocavam uma ideia.
Antes disso, na esquina com a Rua Gomes Freire, no largo da Praça João Pessoa, o tradicional – e quase sempre abarrotado – Ximeninho, também já tinha fechado as portas e recolhido as dezenas de mesas e cadeiras das ruas, ainda no início da noite, por volta das 19h, quando a reportagem esteve pela primeira vez no local.
Em frente ao bar, o dono e um dos fundadores da franquia, Antônio Régis Ximenes, o seu Régis, observava a movimentação – ou a falta dela – com semblante preocupado, que não conseguia esconder. Ele lamenta o prejuízo que deve ter nos próximos dias.
"( A liminar, que estendeu de 17h para 20h o funcionamento ) É um pouco menos pior. Mas ajudar, não ajuda, não...ainda estamos numa situação difícil. O nosso prejuízo nesse período ( pelo menos até quinta-feira ) fica em algo em torno de 60%, ou até muito mais que isso, na verdade. É a hora em que o pessoal sai, vem tomar uma cerveja, um petisco", disse, explicando que, já neste sábado, pretende manter o bar aberto até as 20h.
Enquanto os funcionários amontoavam as cadeiras, já do lado de dentro, Régis também ressaltou que entende a situação e que espera que a pandemia chegue ao fim o quanto antes.
"Nós estamos falando de vidas, e isso é algo muito importante. Nós estamos aqui, vamos continuar obedecendo as regras da prefeitura e torcendo para que essa situação chegue o mais rápido possível ao fim, que a vacina chegue logo", desejou.
A reportagem passou outras duas vezes pela Lapa, às 21h e às 2h, e o cenário, digno de filme fantasmagórico, era o mesmo.
Por toda a orla, da Barra da Tijuca e de Copacabana e Leme, também quase não havia movimentação. Os poucos quiosques com as luzes acesas estavam com mesas e cadeiras guardados, servindo os pedidos apenas para os entregadores, o que é permitido. Também não foi notada movimentação de pedestres em ambos os calçadões, quase que completamente vazios.
Bar foi interditado após fechar as portas com clientes dentro ao notar fiscais
Durante todo o percurso, pelas zonas Norte, Sul e Oeste, a equipe também não registrou flagrantes relevantes de permanência nas ruas após as 23h. Além dos poucos jovens num banco de pedra na Praça Vanhargem, um boteco bem escondido mantinha a porta aberta para uns quatro clientes assíduos na praça do Rio Comprido, já por volta das 1h30. O mesmo se repetiu num botequim de esquina no Riachuelo, na Avenida 24 de Maio.
Entre a rota do Leblon para a Barra da Tijuca, a reportagem até flagrou o comércio funcionando de forma irregular na Rocinha, mas sem maiores aglomerações. Por lá, não haviam fiscais da Seop no momento, por volta das 23h40.
Mas, como nem tudo são flores, apesar de a grande maioria dos bares, restaurantes, botequins, botecos, choperias e afins terem obedecido o decreto, houve também quem os desobedecesse.
A reportagem acompanhou, entre 21h e 23h, a fiscalização da Secretaria Municipal de Ordem Pública (Seop), com apoio da Guarda Municipal e da Polícia Militar, nos bairros de Copacabana, Leme, Ipanema e Leblon, com comboios de quatro a cinco carros. Foram oito bares e restaurantes autuados. Por volta das 22h30, dois bares na Rua Maria Quitéria, esquina com a Rua Prudente de Morais, em Ipanema, o comboio de fiscais do município chegou no momento exato em que um garçom discretamente servia um chope a um cliente solitário num bar.
Em outro restaurante, na mesma rua, as portas estavam abertas para quem quisesse entrar. Na Rua República do Peru, em Copacabana, os responsáveis por um estabelecimento chegaram a fechar as portas às pressas, mesmo com clientes dentro, para tentar ludibriar os fiscais. O secretário de Ordem Pública, Brenno Carnevale, supervisionou a operação, e, apesar de algumas infrações constatadas, definiu, neste primeiro dia de decreto, o saldo como positivo.
"O saldo no momento é bem positivo porque a gente tem visto um movimento muito reduzido de pessoas nas ruas, os estabelecimentos respeitando em sua maioria o decreto do prefeito... infelizmente, ainda existem estabelecimentos descumprindo as medidas, ou seja, fazendo atendimento presencial acima do horário permitido", disse Carnevale.
"Nessa região de Copacabana e Ipanema já foram oito estabelecimentos abordados, autuados. Um interditado porque constatamos que eles perceberam a equipe de fiscalização e arriaram as portas com as pessoas dentro para ludibriar a fiscalização. Também detectamos a presença de alguns ambulantes na orla, então foi feita a apreensão do material vendido de forma irregular".
A multa para quem descumprir as ordens da prefeitura subiu de R$ 112 para R$ 562,42. No entanto, para os estabelecimentos, o prejuízo é bem maior. O secretário revelou que a multa cobrada aos estabelecimentos que foram pegos funcionando fora da hora permitida foi de cerca de R$ 3,2 mil. Em caso de reincidência, esse valor pode dobrar. Em algumas situações, também pode haver início de processo de cassação de licença e de alvará.
Sobre a liminar da Justiça que ampliou de 17h para 20h o horário limite de funcionamento dos bares e restaurantes, o secretário afirmou que a prefeitura irá cumprir o que foi determinado, mas que já estuda recurso.
"Decisão judicial a gente cumpre. Ela foi cumprida assim que a prefeitura foi informada dos seus termos. As fiscalizações já haviam começado, evidentemente, tanto as ocupações preliminares nos espaços públicos para prevenir aglomerações nos pontos focais, como as abordagens, fiscalizações e autuações, mas a gente encara com respeito, parcimônia, com serenidade. Está sendo analisado pelo setor competente, pela Procuradoria-Geral do Município, mas fato é que, mesmo depois do horário estendido pela decisão judicial, ainda assim nós detectamos alguns estabelecimentos descumprindo o decreto, e eles foram autuados", declara Carnevale.
Outras equipes da Seop também estiveram por Barra da Tijuca, Recreio, Vista Alegre, Ilha do Governador, entre outros bairros. De acordo com Carnevale, há focos específicos na operação, mas a estratégia deve mudar, de acordo com as demandas.
"O patrulhamento está existindo pela cidade, mas evidente que existem pontos focais com muita aglomeração, que foram palco de descumprimentos contínuos das determinações da prefeitura, que exigiram muito da prefeitura, que foram muitas vezes autuados, como Dias Ferreira, Olegário Maciel, Lapa, e esses locais evidentemente por uma questão de estratégia eles precisam ter a fiscalização intensificada. Mas estamos, por exemplo, em Vista Alegre, e a situação está controlada. Amanhã ( este sábado ) nós já temos um outro planejamento. Obviamente continuaremos com a ocupação desses espaços, mas vamos de acordo com o que a gente vai verificando, mapeando, a gente vai mudando a estratégia — explicou. — Deixo o agradecimento às pessoas que estão cumprindo o decreto. Gostaria de pedir para que elas continuem nesta mesma toada porque, quanto mais colaboração, mais rápido a gente espera que a ciência avance e a pandemia distensione e a gente consiga voltar para a vida normal".
Novas restrições
Pelo menos até quinta-feira, por decisão do prefeito Eduardo Paes , boates, festas e rodas de samba estão proibidas. Bares, restaurantes e quiosques estão autorizados a funcionar apenas de 6h da manhã às 20h da noite — o decreto, que previa até 17h, foi estendido por decisão da justiça.
A permanência em locais e praças públicos também está proibida entre 23h e 5h – sob pena de multa de R$ 562,42 por descumprimento ou até de interdição para os estabelecimentos. Apesar disso, banho de mar, exercícios e permanência na areia das praias seguem liberados, mas ambulantes e barraqueiros não podem comercializar seus produtos.