“Em uma padaria, um corpo ao chão, um saco preto largado. Entre sorvetes, pães e salgados. Não procuravam nem saber se aquela pessoa deixou um legado. A morte na rua é assim, caixão fino que lembra um papelão, cova vazia”. A frase escrita numa cartolina, foi afixada na parede da agência de um banco na Praça Nossa Senhora da Paz. Era uma homenagem a Carlos Eduardo Pires Magalhães, o homem negro que agonizou numa padaria do bairro , na última sexta-feira, sem que ninguém o ajudasse. O caso foi relatado pelo jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, em sua coluna no GLOBO.
Carlos Eduardo costumava dormir na calçada do banco. Ficava embaixo da marquise, aproveitando o ar-condicionado que passava pela fresta da porta da agência.
A pessoa que escreveu o texto se identificou como Leo Motta, um “ex- morador de rua , escritor e ativista”. A morte de Carlos Eduardo comoveu Leo, mas quem assistiu aos últimos momentos da pessoa em situação de rua ficou impassível: as pessoas, na padaria, continuaram tomando café da manhã, mesmo com o corpo de Carlos estendido no chão .
Carlos Eduardo, que teria sido vítima de tuberculose , foi enterrado nesta quarta-feira no Cemitério de Olinda, em Nilópolis, na presença de poucos familiares por conta das restrições impostas pela Covid-19. Entre eles, a mãe Marlene Alves Flauzino, de 67 anos, e cinco irmãos de Carlos.
O cortejo seguiu até o túmulo pontualmente às 15h. Marlene não suportou a dor da perda e teve que ficar na capela. Com a pressão baixa, ela sequer teve forças para enterrar o filho. Sua preocupação era ver o rosto de Carlinhos, como era carinhosamente chamado, pela última vez.
"Queria me despedir dele. Ver se ele estava limpinho e com a barba feito. Não gostei da foto que vi dele", diz Marlene, referindo-se a uma foto que viu no jornal dele, com uma longa barba por fazer.
Ela comprou um jeans e uma camisa azul para cobrir o corpo franzino do filho. As irmãs providenciaram que o cabelo fosse aparado e a barba raspada. Ao lado dele, a mãe chorava e rezava para Nossa Senhora Aparecida, de quem é devota. Ao fim da cerimônia, foi feita uma oração até o corpo baixar a sepultura.
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"Mamãe está dopada. Sem condições de falar. Foi tudo muito intenso. Seis dias de luta para identificá-lo, liberar o corpo e enterrá-lo. Tudo que queríamos era dar-lhe um sepultamento com dignidade. Ele não podia ser enterrado como indigente. Ele vivia na rua, mas tinha família", ressalta Dandara Sampaio.
Ela explica que, por conta da burocracia, não houve tempo de avisar aos amigos que ele seria enterrado.
"Soube que as pessoas da praça, onde ele dormia, gostariam de se despedir dele. Peço desculpas, mas foi tudo muito complicado. Não podíamos mais esperar, pois minha mãe estava sofrendo muito sem dormir, sem comer", explicou.
Apesar do descaso dos donos da padaria e de clientes que não deram assistência a Carlos Eduardo, a família não pensa em mover um processo contra a padaria por omissão de socorro.
"Tudo que a gente faz na vida, volta para gente. Lá na frente, as pessoas serão cobradas. Queremos só paz para ele", conclui Dandara.
População invisível
Assim como Carlos Eduardo, outros moradores de rua continuam invisíveis, até mesmo para as autoridades. O censo realizado pela prefeitura entre 26 e 29 de outubro, e que teria as informações divulgadas, segundo o prefeito Marcelo Crivella , em até sete dias, só deverá ser apresentado esta semana, de acordo com a Secretaria municipal de Assistência Social e Direitos Humanos. A pasta alega que a empresa Qualitest, contratada para fazer a pesquisa, está ainda na fase de apuração de dados.
O último censo feito pela prefeitura, em 2018, gerou polêmica ao apontar que 4.628 pessoas viviam nas ruas, enquanto um estudo de dois anos antes contabilizava 14.279. Já a Defensoria Pública, em março passado, estimou outro número: 17 mil.
Entre as promessas de Eduardo Paes
, durante a campanha para prefeito, estão a de abrir três mil novas vagas em centros de acolhimento, recuperação e reabilitação. Com isso, quase duplicará a oferta.