"Ela apontou para mim e me chamou de escrav a, como se fosse algo natural. Resolvi denunciar porque não podemos mais aceitar isso. É hora de abrir a boca e expor o racismo ". O relato de mais um caso de preconceito e injúria racial é da assistente de vendas Janine de Oliveira Monteiro, de 27 anos, que trabalhava como estoquista na loja Rosa Chá, no Shopping Leblon, Zona Sul do Rio.
De acordo com ela, no último dia 14 de julho, a gerente da loja a chamou de escrava durante uma reunião de trabalho na presença de outros funcionários.
"Estávamos conversando, eu e outro colega de trabalho, sobre uma receita de bolo de chocolate chamado de 'nega maluca', quando ela começou a abordar temas de judeus e escravos, algo que nada tinha a ver com o assunto. Num determinado momento, ela me usou como exemplo e disse 'assim como você, escrava'. Foi horrível. Custei a acreditar que ela estava me chamando dessa forma", relata Janine.
Logo após, a vítima conta que a gerente prosseguiu falando como se nada tivesse acontecido. Os outros funcionários que testemunharam a cena apoiaram Janine. Ela registrou ocorrência
na 14ª DP (Leblon).
"A forma como ela revistava a minha bolsa era diferente dos outros funcionários. Eu questionava e nada era feito. Fora outras vezes em que ela falava que não tinha problemas em sujar o chão porque eu que iria limpar , mesmo eu trabalhando como estoquista ", diz Janine.
A assistente de vendas, que mora na comunidade da Rocinha, Zona Sul, trabalhou por nove meses na loja e teme pelo futuro da família. "Eu tentei continuar trabalhando na loja, mas não consegui, o ambiente ficou desconfortável. Passei a ter crises de ansiedade no trabalho. Tentei porque eu preciso do emprego, tenho dois filhos e pago aluguel e escola para eles. Eu não posso ficar desempregada ."
E esse não foi o primeiro caso de racismo vivido por ela. Por isso, espera que todas as vítimas também tenham coragem de denunciar. "Quando eu trabalhava em outra loja, a gerente tinha preconceito com o meu cabelo, falava que estava na hora de eu penteá-lo. Eu espero que ninguém tenha que aceitar passar por isso. É doloroso, ninguém tem o direito de discriminar ninguém. Espero que cada vez mais pessoas tenham coragem de falar e não aceitar o preconceito."
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Empresa afasta funcionária, e shopping repudia discriminação
Em nota, a Restoque, dona da marca Rosa Chá, destaca que "repudia com veemência qualquer tipo de atitude discriminatória". Após tomar conhecimento desse episódio, a companhia afastou a colaboradora denunciada de suas atividades, até que os fatos sejam apurados, e instaurou uma comissão de sindicância para as providências.
A empresa também informa que não recebeu registros sobre o caso nos canais confidenciais e internos. "Toda e qualquer denúncia é levada ao conhecimento da administração, que as analisam e tomam as devidas providências. A companhia ressalta que contribuirá com as investigações das autoridades responsáveis, apresentando também a elas as conclusões da referida comissão, bem como prestará o apoio necessário para a colaboradora denunciante", esclarece a marca.
Em nota, o Shopping Leblon destaca que repudia qualquer atitude discriminatória
. O centro comercial destaca ainda que "a abordagem relatada não condiz com a postura adotada pelo empreendimento, que zela para que todos sejam bem-vindos, oferecendo um ambiente de trabalho, lazer, diversão e compras de forma igualitária a todas as pessoas". A administração do Shopping Leblon afirma também que vai reforçar as orientações de boas práticas e conduta entre lojistas.
Em nota, o advogado Ruan Pablo, que acompanha o caso de Janine, repudia o estigma expressado pela funcionária, "decorrente de sua condição de negra, pobre e moradora de comunidade, não sendo aceitável ser chamada de escrava dentro do próprio ambiente de trabalho. Além do mais, seus traços físicos não são capazes de lhe atribuir um perfil criminoso, e, portanto, não legitimam a empresa a fazer com que a Janine seja submetida a revista pessoal mais severa do que as aplicadas aos demais funcionários não detentores de tais características. Por fim, informo que as autoridades competentes já foram acionadas, a fim de serem adotadas as medidas cabíveis ".
Casos de racismo correspondem a um quarto da demanda
De acordo com o titular da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), delegado Gilbert Stivanello, cerca de 27% dos registros são referentes a casos de racismo e de injúria racia l, crimes que ficam abaixo apenas dos episódios de LGBTfobia (40%). Segundo ele, houve um aumento nos casos de injúria racial nos últimos meses.
"Alguns casos recentes tiveram mais visibilidade . Há dois tipos de delito dessa natureza. O primeiro, a discriminação por racismo, consiste na prática de atos discriminatórios como negar o acesso de uma pessoa a determinado local, excluir a pessoa de uma seleção de empregos ou criar um site ofendendo pessoas em razão da etnia, raça ou cor. O segundo é a injúria racial, que é o xingamento acrescido do emprego da alusão à cor da pele para essa ofensa", explica ele.
Stivanello destaca que, em qualquer das duas situações, a vítima deve procurar a Decradi ou ir até a unidade distrital da área onde ocorreu o crime para registrar o crime. Para ele, o importante é denunciar. "O importante é fazer a ocorrência. Além da questão penal, que pode servir como fator inibitório para o autor não reincidir, os dados constroem uma estatística que vai orientar políticas públicas. É super relevante que as vítimas não se omitam e tenham coragem de expor."
Segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), 33.933 ocorrências por injúria, que incluem injúria racial, foram registradas no ano passado em todo o estado. Já os casos de preconceito por cor, raça, etnia, religião ou procedência nacional foram 114 em 2019 — aumento de quase 60% em comparação com 2018, quando houve 71 vítimas.
De acordo com a Polícia Civil, as investigações estão em andament o na 14ª DP (Leblon) para apurar os fatos. "Os envolvidos no caso estão sendo chamados para prestar depoimento na unidade policial".