Combate à fome: projetos lidam com procura cada vez maior e queda nas doações
Depoimentos que vão de norte a sul de São Paulo revelam que a fome não tem rosto
Por Tiemi Osato |
No início da pandemia de Covid-19 , gerou-se uma comoção intensa responsável por aumentar as doações direcionadas a pessoas em situação de vulnerabilidade. Quatro meses depois, no entanto, esses atos de solidariedade parecem ter diminuído e os grupos de ajuda não têm recebido tantos recursos como antes.
O projeto Brasilândia Cabeção, cujo nome foi inspirado pela necessidade de se pensar na responsabilidade social, começou distribuindo 26 cestas básicas no início da pandemia. Em quatro meses, esse número cresceu cinco vezes: hoje, são 130 cestas distribuídas semanalmente. Rodrigo Olegário, líder do projeto, conta que se surpreendeu com a quantidade de pessoas que não têm o que comer: “pessoas até que eu não imaginava estão passando por dificuldades”.
A iniciativa Solidariedade Vegan, com doações em dinheiro e apoio de outras organizações, passou de 76 para, pelo menos, 200 marmitas entregues por dia em diversos pontos de São Paulo. Vivi Torrico, idealizadora do projeto, diz que, nos primeiros meses, as pessoas estavam bem mais sensibilizadas com a causa. Ela também chama a atenção para o fato de que, mesmo após esse período de crise, o problema da fome irá persistir.
Brasilândia Cabeção
Todo domingo, por volta das 7h da manhã, forma-se uma fila que ocupa quase um quarteirão inteiro na Vila Icaraí, na Brasilândia , zona norte de São Paulo. Moradores de um dos bairros mais afetados pela pandemia vão até a casa do líder comunitário Rodrigo Olegário, 42, para retirar cestas básicas. Nascido e criado na Brasilândia, ele conta que, atualmente, 80% do seu cotidiano é ocupado pelo projeto, que surgiu no início da pandemia sem um plano estruturado e com apenas 26 cestas básicas disponíveis.
Na época, devido à quantidade restrita de cestas, Rodrigo escolheu as famílias que se encontravam em situação mais emergencial e combinou a entrega. No dia seguinte, ao invés de 26 pessoas, apareceram 200. Foi uma surpresa para Olegário, que não imaginava que tantos estariam precisando de assistência. A partir daí, o projeto se expandiu. Desde março, o Brasilândia Cabeção já conseguiu atender quase 5 mil famílias no total. “Se você colocar isso em dinheiro, é muita grana”, ele observa.
A alimentação, segundo Rodrigo, é a maior necessidade das pessoas. Grande parte da periferia ficou sem renda em decorrência da pandemia e, para muitos, o auxílio emergencial não chegou. “E mesmo o que chega é pouco”, aponta. Com uma renda baixa, os moradores escolhem pagar aluguel, luz e água. Por isso, o Brasilândia Cabeção procura dar apoio no âmbito alimentício.
Apesar da doação de cestas básicas acontecer na residência de Rodrigo, o líder comunitário conta que já visitou algumas casas. Em uma delas, a geladeira estava completamente vazia. “Se você não viesse na minha casa hoje, eu não teria o que comer”, foi o que a moradora disse a Rodrigo. Ele também relata que costuma receber várias mensagens ao longo do dia. Certa vez, uma mãe de três gêmeos chegou a solicitar uma troca: gás, que havia acabado na casa dela, ao invés da cesta básica. Rodrigo forneceu à família as duas coisas.
Hoje, o projeto tem atendido cerca de 260 famílias por domingo — 130 retiram a cesta básica, enquanto outras 130 se cadastram para recebê-la no próximo final de semana. Esse número, no entanto, já foi maior, quando 150 famílias conseguiam a cesta básica semanalmente. O desafio no momento é encontrar novos meios de arrecadar recursos e doações. “A demanda não parou para nós”, Rodrigo ressalta. “Todo dia mandam mensagem no meu celular perguntando se ainda estou entregando cesta básica. A situação está séria”, complementa.
Quanto ao apoio governamental, Rodrigo menciona a iniciativa Cidade Solidária. Apesar de não ser uma articulação voltada especificamente para a Brasilândia, e sim para toda a cidade, Rodrigo destaca que a arrecadação dos postos também caiu.
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Solidariedade Vegan
Até mesmo iniciativas que possuem maior visibilidade, como o Solidariedade Vegan, ainda precisam de recursos. “Como todo projeto, ele não fica estável. Tem altos e baixos. A gente depende de doações para mantê-lo”, explica o voluntário Jonathas Novaes, 38 anos.
O projeto já recebeu várias contribuições pequenas, no valor de, no máximo, dez reais. Assim, quantias baixas como R$1,99 são significativas e ajudam a manter as entregas diárias, que começaram com 76 marmitas e hoje variam entre 200 e 250. Em algumas ações específicas, esse número chega a 600.
Idealizado por Vivi Torrico e João Gordo, o Solidariedade Vegan distribui marmitas veganas diariamente para pessoas em situação de rua, catadores e todos aqueles que não possuem recursos para custear suas refeições. Jonathas dá apoio fornecendo embalagens para as marmitas . Através de uma vaquinha, tem sido possível adquirir cinco mil embalagens por mês. O projeto está ativo desde o dia 1° de abril e, até agora, mais de 17.200 marmitas já foram entregues.
Inicialmente, a ideia era atuar durante o tempo que durasse a crise desencadeada pelo novo coronavírus. “Como a gente viu que o negócio é muito mais além, o projeto será mantido após a pandemia sim”, reforça Jonathas. Ele também ressalta que são muitas as pessoas que estão passando por necessidade, especialmente nesse momento de fragilidade social: “tem família, tem criança, tem jovem, tem idoso”.
Jonathas conta que foi durante uma das ações de entrega de marmita, no Largo São Francisco, que ele percebeu a gravidade da situação: “só conseguimos ter uma dimensão maior quando estamos envolvidos, é surreal”.
Vivi Torrico observa que as realidades são muito diferentes umas das outras, porém todas são graves e extremas. Em regiões como o Pateo do Colégio e nos arredores da Praça Roosevelt, ela chama a atenção para a presença de jovens de 19 anos ou menos, que foram para a rua por problemas familiares. O Solidariedade Vegan atende também comunidades, como a do Boqueirão , na zona sul de São Paulo: “você vê a pobreza e a necessidade, mas cada vez que a gente entrega é um momento festivo”, Vivi relata.
Outra localidade onde o projeto costuma distribuir marmitas é na Aldeia Tekoa Itakupe. Para Vivi, é revoltante “o descaso com o povo originário e com um dos últimos espaços verdes em São Paulo”. No centro da cidade, perto da Sé , ela conta que, todos os dias, por volta de mil pessoas costumam retirar a marmita no horário do almoço. No jantar, esse número duplica.
Como as entregas são frequentes, os voluntários do projeto criam vínculos com as pessoas que eles encontram. “A gente já sabe que tem o seu Fernando que está esperando a marmita e que ele sempre leva duas, porque no dia seguinte ele esquenta e dá para os filhos”, Torrico explica. Para ela, ter consciência dessas realidades estimula a manutenção de um compromisso firme com a iniciativa Solidariedade Vegan. “Isso faz com que a gente nem pense em parar”, Vivi conclui.
Saiba como ajudar
O Solidariedade Vegan aceita doações via Paypal, Catarse, PicPay e depósitos em conta Itaú. Para mais informações, acesse o Instagram do projeto
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A iniciativa Brasilândia Cabeção arrecada recursos através de uma vaquinha . As atualizações são divulgadas no Instagram da organização .